19 março 2021

SUL – Breves instantes à Socapa do Mundo

 SUL – Breves instantes à Socapa do Mundo

  


Dia 10Mar21 – Etapa Montijo – Coruche -  Couço (Canal Sorraia, em tenda) – 126km

Precisava disto. Todas as limitações impostas pelo governo criaram um fosso com a natureza. O Governo não permite a liberdade de movimentos, excepto em casos excepcionais. Para mim, estava a ser crucial fazer uma escapadela em modo travessia.

Fui à socapa do mundo.



Antes das 8h da manhã estava a sair do comboio no Cais do Sodré. Do outro lado das portas de vidro, avisto pessoas a encurtar o passo, a pararem e  a serem abordadas por vários polícias. Por um momento estou sozinho. Atrás de mim o fim da linha. Os comboios parados. Todos os passageiros já tinham seguido aos seus destinos. Num instante pensei que tinha mesmo que apanhar o metro e chegar a outra estação. Já no piso inferior encontro as escadas de saída. Sigo pelas íngremes escadas rolantes, a cabeça bem levantada a verificar se não existem surpresas à superfície. Quatro carros da polícia estão estacionados. Todos os profissionais estão ocupados no interior da estação e por isso dei continuidade aos meus planos de apanhar o barco para o Montijo. Era desta cidade à beira rio que iria começar a odisseia de 3 dias.

Os caminhos brancos ladeados por cercas dominam para lá de Alcochete. Há uma parte do troço ligeiramente desagradável. São vários quilómetros a partilhar a estrada com viaturas pesadas que se deslocam para Porto Alto. Sem bermas, sem escapatória, sente-se a deslocação do ar e a vibração dos pneus sobre o alcatrão.

Na zona das lezírias desloco-me rapidamente. No topo das valas de abastecimento de água, a bicicleta progride sem grande dificuldade. Nas partes mais baixas a água acumula-se, os poços surgem com regularidade e a lama seca começa a ser traiçoeira.



É em Coruche, já perto das 15h, que compro algo no supermercado para almoçar. Autonomia em tempo de pandemia não combina e como são poucas as fontes, torna-se necessário ir bem abastecido. Na ciclovia desta cidade ribatejana avanço bem colado ao rio Sorraia. As marcações do percurso de Erra da FPC surgem em placas metálicas cravadas no solo. A simbologia indica tratar-se de um percurso fácil.



Garças, lontras, o chilrear de pássaros abundam neste corredor verde coberto de vida. As horas de luz nesta época do ano não permitem grandes aventuras para lá das 19h da tarde.Com esta, digamos, limitação, e de não ter a certeza se chego a Mora de dia, é no Couço que procuro um supermercado. Podia fazer tudo com a luz do frontal, no entanto, em Mora nada estaria aberto para me vender algo e em verdade, o meu espírito não é absorver quilómetros. Quero olhar a luz na paisagem, ver cada cor a distinguir-se no verde dominante.

Abrando o ritmo, deixo que um habitante local montado na sua bicicleta se aproxime de mim.

- Há por aqui algum supermercado?- questiono.

- É desfasado daqui, mas há a loja da Teresa, responde o homem do Couço.

Foi apenas necessário voltar atrás algumas ruas, evitar a GNR e subir a estrada de tout-venant para olhar de frente para o pavilhão onde se lê supermercado numas letras gigantes. Tenho mais 45 min de luz no máximo. Abasteço, o pão de kilo alentejano sobre o saco do alforge parece a bossa de um camelo. Alguns momentos antes, no acto de pagar junto da caixa registadora, questionei. É o único pão que tem?

- É, diz a Teresa.

- É para o jantar, não tenho espaço para o levar.

- Mas olhe que está quentinho.

-Pode ser. Como metade ao jantar e o resto de manhã.

Afastei-me e ao longo do canal de água fui procurando um pequeno espaço para estacar a tenda.


 Dia 11Mar21 – Etapa Couço (Canal Sorraia, em tenda) – Cromeleque Almendres 99kms

Foi intenso o frio durante a noite. A parte exterior da tenda estava tal e qual como se tivesse chovido. O céu carregado não mostrava qualquer sinal que fosse melhorar ao longo do dia. Depois de iniciar o movimento, alguns metros adiante, a vala termina junto a um muro de betão. A água cai da represa com violência. Tive que dar meia volta, apanhar um bocado de estrada nacional, passar na ponte para chegar a Mora já do outro lado do rio. O montado é agora parte integral deste percurso. As cancelas começam também a surgir. Atravesso o monte da Fraga rodeado de árvores que no próximo ano já devem dar fruto. Avisto Mora a uma distância curta, cruzo a ribeira para chegar a mais uma vila alentejana onde não se vê vivalma.


Mesmo de portas fechadas, o fluviário continua a ser um local onde vale sempre a pena regressar. Os caminhos de terra batida apresentam alguns declives mas sem grandes acumulados de subida. Desvio da estrada, salto a cerca e chego à antiga linha de caminho de ferro de Pavia. Está tudo alagado, a superfície além da água está em péssimo estado. Sou forçado a procurar um ponto mais alto para melhor conseguir pedalar. Rolo sobre ervas, flores, torrões, esterco de vaca. Por enquanto consigo manter fluido o movimento. Volto a saltar cercas e pular valas para ver que o único caminho disponível num troço já afastado de Pavia está ocupado com uma manada de vacas. A campainha da bike afasta pessoas mas estes enormes bifes da vazia precisam de um outro estímulo. Uma vaca, mais teimosa, fica de olho em mim. Eu fico de olho nela e nisto passamos alguns minutos. Ela cede, talvez tenha percebido que o meu único sentido fosse aquele.



Altaneiro, o Castelo de Arraiolos é uma referência no horizonte e o meu estímulo para suportar o pedaço de caminho que me leva até Vale Paio. Nesta antiga estação existem locais para deixar a bicicleta e também bancos para descansar. Algumas barreiras de metal impedem que os transeuntes incautos façam o trajecto para o lado de onde estou a vir neste momento. A saturação dos terrenos continua, no entanto, como todo o restante troço está limpo de vegetação, é muito fácil ganhar velocidade. Não subo a Arraiolos. Tenho alimentos para, sentado numa pedra à beira do caminho, tomar uma refeição.



Daqui em diante é-me familiar a ecopista. Fazia-a muita vez quando morava em Évora. As rectas parecem não terminar, à medida que os quilómetros diminuem para a cidade Património da humanidade, a ecopista ganha alcatrão e mais adeptos de caminhada. Subo para o templo de Diana pela rua de sentido proibido. A outra via passava mesmo ao lado da PSP e como era a subir e eu ia mais devagar e carregado que o habitual, a polícia via-me.

Quem viu Évora durante tantos anos sempre cheia de vida e de turistas, dar de caras agora com ruas desertas, é surreal. Debaixo das arcadas era comum observar os aglomerados de pessoas a conversarem e neste momento, todo o espaço permanece por ocupar.

Preciso abastecer antes que a noite chegue e também porque tenho que acampar em mais um local isolado. Vou para a horta das Figueiras onde existem vários supermercados. Abrando até chegar à porta do Pingo Doce e ao ver o policia à entrada, dou mais umas pedaladas para chegar até ao Lidl. O sinal está vermelho, significa que existe fila para entrar e que no interior está gente a mais. Volto para trás, o polícia não deve dizer nada. Compro, como, carrego e sigo para o Cromeleque dos Almendres. Se o local era sagrado para os nossos antepassados terem arrastado tantas pedras para esta colina, eu precisava escarrapachar a minha tenda perto para sentir a mesma experiência neste local místico.

Dia 12Mar21 – Etapa Cromeleque Almendres – Montijo 110 kms



Como vem sendo hábito, acordo algumas vezes durante a noite. O saco que uso como almofada não está a resultar e acordo por vezes com dores de pescoço. Estou bem enroscadinho dentro do saco-cama, e nem a boca fica destapada. O meu bafo serve também para manter o interior bem quente. De repente, espreito pela abertura e vejo uma enorme claridade. Pensei imediatamente, será que o telemóvel por estar a carregar com o powerbank não despertou às 07h? Levantei-me, lá fora, uma neblina cobria todo o monte. Uma manta de humidade abraçava toda a envolvente. Eu estava lento de movimentos, esta fase da  pandemia parece que estava a paralisar-me as ações, deixando-me sem saber o que fazer em primeiro lugar. Opto então por tirar a primeira camada da tenda para que seque a humidade que acumulou em excesso com o orvalho da noite. Não eram 08h00 e já oiço o tractor com atrelado a movimentar-se. O som vem na minha direcção até que vejo o tractor chegar junto da madeira cortada que vi ontem. Aquilo que no dia anterior eu pensava que podia acontecer, aconteceu. Minutos depois, mais trabalhadores para recolherem a lenha cortada. Eu sei que estou oculto pela vegetação, no entanto, tinha a noção que com as cores claras do meu equipamento, era fácil realçar-me no verde que me rodeava. Não tive qualquer problema. Fiz a minha vida normal, continuei a arrumar os tachos, a tomar o pequeno-almoço e a preparar a bicicleta para arrancar. Quando saí, a equipa já tinha ido embora também.

O terreno torna-se mais acidentado com pedras e sulcos profundos nos caminhos. Os portões e as ribeiras carregadas de água obrigam a tirar os sapatos. Admiro cada árvore, cada curva deste singular trajecto até chegar a S. Sebastião da Giesteira onde abasteci de água num minimercado e em troca, comprei uma garrafa de leite achocolatado Ucal.

  Começa a surgir sinalização da pista do Monfurado. Numa curta fracção de tempo chego a Castelos, entro e rolo na ecopista a mais de 30km/h até à Torre da Gadanha. Esta estação de comboios está em pleno funcionamento e foi preciso passar sobre as linhas da ferrovia para continuar a minha viagem.

A paisagem muda. Os caminhos brancos de tout-venant estendem-se por largos quilómetros, ocasionalmente, um troço mais mal conservado ou muito utilizado pelos tractores, apresenta sulcos profundos e alguma lama. Felizmente está seco. Estou para lá de Cabrela quando recebo a chamada do Silvano Lourenço, um amigo do Portugal Bikepacking, que decidiu juntar-se a mim. Ele não podia fazer os 3 dias comigo e por isso decidiu que na 6f, após o turno da noite, iria em sentido contrário ao meu encontro. Estávamos desfasados por vários quilómetros ainda. Ficou combinado que cada um seguiria ao seu ritmo e que iríamos dando informações da nossa posição passado algumas horas.

Fiz com que os pedais girassem a menor velocidade, fui tirando fotos de pontos de referência, e sobre o viaduto da A2, parei para fazer tempo e comer algo. Após publicar no FB para que o Silvano viesse depressa  para comer um ovo cozido, eis que debaixo da sombra do viaduto, surge um ciclista.  O homem vinha estafado, tinha vindo bem depressa tentando sempre ganhar espaço para conseguir estar comigo. Só nos conhecíamos da rede social, mas nunca houve momentos de silêncio ou constrangimento nas nossas conversas. Os assuntos fluíam como se nos conhecêssemos desde sempre. As bicicletas iam embaladas nos caminhos de pó branco. São Terras de Pó, diz o vinho da casa Ermelinda. Num dia de muito calor ou vento estas rectas intermináveis podem quebrar muitos ciclistas. O Silvano, preocupado, dizia que eram só 8km de recta e que após isso estaríamos a beber uma fresquinha no Pinhal Novo. Seguíamos paralelos ao caminho-de-ferro com as nossas fiéis companheiras a rolarem livremente. Só o cansaço e a posição estática estavam a provocar algum desconforto. A velocidade, não baixava.



As minis para o Silvano são de 33cl, não consegui ir à segunda rodada. Faltava toda a ciclovia até ao Montijo, seria arriscado levar tanto álcool no sangue sabendo que neste caminho iriam existir muitas pessoas a passear e a andar de bicicleta.

A estação do Montijo foi o ponto de separação dos nossos destinos finais. O Silvano voltava para casa, eu seguia para o terminal fluvial para apanhar o barco até ao Cais do Sodré.

Tanto polícia novamente em Lisboa! É a repetição de 4f quando estavam a controlar quem tinha autorização para estar neste concelho? Avancei pouco a pouco até à bilheteira. Todos os elementos policiais estavam concentrados junto ao Pingo Doce, devia ter havido algum incidente. Passa um polícia, depois outro cruza-se comigo, nada se passa, o problema deles é outro. Segundo o homem da CP, foi mais um assalto naquele supermercado. É normal.

Terminei assim uma pequena viagem de bicicleta de 3 dias pelo sul de Portugal. Numa altura em que o Covid se vem arrastando há mais de um ano, e uma das formas encontradas para controlar esta pandemia tem sido os confinamentos forçados de 2 meses, ter tido a oportunidade de conectar-me com a natureza, sentado de forma livre em cima de uma bicicleta, permitiu-me um reset ao sistema que há muito sentia em sobrecarga

Vídeo Integral com passagem pela Ecopista de Pavia a Évora