26 maio 2017

Caminho do Mar para visitar o Papa Francisco


 “O que é que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que é que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o seu caminho, a erguer o olhar além do horizonte imediato, a sonhar uma vida digam da sua vocação, se não a Beleza?”
                                                                                             Papa Bento XVI

A caminho… Since 1999

Não é preciso fazer o Caminho com um terço na mão e duas rodas no chão.


Desde 1999 que percorro os Caminhos de Santiago. Exceptuando o que me levou de Roma a Fátima, todos os outros têm tido como destino Santiago de Compostela.
São muitos anos a sair de casa, o Caminho continua, é, no entanto, altura de fazer o regresso.  
O Caminho é o que nos leva à família. Gosto de voltar à casa onde está quem me acolhe, que aceita a minha condição de peregrino e esta necessidade de conhecer todas as coisas que despertam em mim o mesmo sentimento que uma criança sente quando vê algo pela primeira vez.
Neste périplo o meu quilómetro zero será no Convento de Cristo em Tomar. Seguirei de Nascente a Poente, passarei pelo Santuário de Fátima, desvio ao Convento de Alcobaça para depois continuar até à Nazaré.

Não é o mais perto da costa que posso ir, mas é, o trajecto que mais monumentos, igrejas e conventos poderei visitar. O Centro Nacional de Cultura chamou-lhe o Caminho do Mar e liga a cidade do Estoril a Fátima.
Vou segui-lo até à igreja matriz de Oeiras. Não é possível o engano, são muitos os sinais que me guiam.

Que sinais é que eu sigo?


Para a Patagónia, fui para Sul. Já segui para o Norte com a Islândia em vista. Lembro-me de ter ido para os lados do Oriente quando estive em Petra.
Neste meu destino para Oeste, como o peregrino que sabe donde parte, onde quer chegar, mas não sabe o que vai encontrar pelo caminho, confio nos trilhos que me conduzem ao Papa e terminam junto de ondas gigantes.

Aproveito assim para comemorar o Centenário das Aparições de Fátima

Estava escrito algures que “Os que trilham os caminhos do Santuário sabem que naquela geografia experimentam o Deus que extravasa todas as fronteiras.”

Oeiras-Santa Apolónia-Tomar-Alfeizerão


Vivemos num tempo seta. Com esta expressão não me refiro no sentido do tempo que voa e não volta para trás mas nas afirmações constantes que fazemos ao dizermos que não temos tempo. Não é o tempo relativo?
Vivemos num mundo tecnológico que corre velozmente e contagia as pessoas.
Uma coisa sei, não se pode poupar o tempo. É cedo, muito cedo. O cérebro não ajuda a processar a informação sobre se devo ou não escrever que o que inicio hoje é uma viagem?
Se começo o dia bem cedo é sinal me preparo para mais uma aventura. São apenas 2 dias. É este o tempo que falta para o 13maio.
Comemora-se o Centenário das Aparições de Fátima, justifica-se plenamente uma viagem. Sim, respondo agora com a caneta. É uma viagem, vou de a para b sabendo que é tudo aquilo que encontro neste intervalo a razão pela qual começo dia antes do sol nascer.
As previsões meteorológicas não são favoráveis para os próximos dias, aliás, há mais de uma semana que olho o céu enquanto espero uma aberta entre as nuvens que teimam em não se mexer.
Não adianta esperar, se olharmos o cenário da janela, ligarmos ao alerta amarelo, começamos a pensar demais. A mente pode acabar por dominar o corpo, o conforto não quer sair e podemos ficar arrependidos por adiarmos mais um projecto.
Se quisesse podia arranjar desculpas que seriam capazes de encher um camião TIR, no entanto, basta-me uma razão para colocar os pés nos pedais.
Falta pouco para chegar a Tomar, estação terminal. Começo a pedalada em direcção ao Convento de Cristo, ao mesmo tempo, olho o cinzento do céu e penso se terá sido uma boa opção fazer-me ao caminho nestas circunstâncias.

Abrigo-me numa das inúmeras concavidades que este monumento oferece. A previsão falava em trovoada e aguaceiros. Há muito tempo que não ficava assim, parado, a ver chover.
Saio numa aberta que nada durou. A copa da árvore serve-me de toldo, parece que alguém verteu um cântaro lá do alto. Quando entro no trilho, só lama, pedra e água que corria por todos os lados. Agachado no arco do aqueduto e foi aí que ponderei voltar à estação de comboios e retornar a casa. Ora chove, ora não chove. Passam-se minuto neste compasso. Avanço timidamente olhando o gps, a chuva continua a cair mas desligo a mente. Aliás, a bátega é tanta que faz doer os olhos.


Até Fátima a roupa passa por várias fases de lavagem e secagem. Dificilmente se vê um peregrino com um pé sobre o caminho de terra (ou será água?!), no entanto, ao chegar à estrada parecem pirilampos mágicos.
Alguém um dia tem de explicar-me a atracção pelo alcatrão…

Fátima “parece” um quartel-general. A um dia de chegada do Papa e contava ver o Santuário muito mais recheado de massa humana. As tendas e as lonas esticadas como avançados do carro que se encontram no parque de campismo improvisado ao lado dos parques de estacionamento não têm ocupação suficiente de pessoas que resulte numa enchente.
Amanhã será o grande dia de viagem para milhares de peregrinos e será também um excelente dia para cultivar a paciência.
Adorei os trilhos daqui para a frente. Os caminhos, assentes sobre pedra calcária e cascalho são perfeitas para uma bicicleta todo o terreno. Há que evitar a subida à Serra Aire antes de Pedreiras. Não é ciclável.

Até Coz nem o caminho nascente nem o poente desiludem. Vale a pena a visita ao Mosteiro Cisterciense. Quem olhar de fora deve meditar nas seguintes palavras. “Quem vê caras não vê corações”.

Alguns metros adiante, de visita à adega conheço um homem do Quénia. Funciona neste espaço um pequeno atelier que produz alguns objectos utilizando como matéria prima o junco.
O “Tito do Quénia” apaixonou-se pela arte e pelo local e aqui ficou para aprender, e quem sabe viver.

Já não estou longe da Nazaré. O vento sopra de sudoeste e não dá tréguas. É no Sítio que o  vejo fluir livremente enquanto corre veloz.

Ligo-me ao Caminho do Mar enquanto o observo da Serra das Pescarias. A construção imobiliária na encosta parece exagerada. Parece que alguns (muitos) querem olhar o mar através da janela ada sala ou do quarto. Continuo a preferir faze-lo no meu veículo a pedais sem portas nem janelas.

Vou dormir em Alfeizerão, já mereço descansar depois de tantas horas sentado num selim. Confesso que gostaria de ter esta capacidade de aguentar o mesmo número de horas na mesma posição sobre uma cadeira no local de trabalho.

Alfeizerão-Obidos-Torres Vedras

A pousada da juventude de Alfeizerão está bem situada e permite ter uma vista desafogada sobre o areal e o mar.
É bom começar o dia a descer e retornar ao track alguns quilómetros adiante. Entrei na zona Oeste e todo o caminho é muito rápido até às Caldas da Rainha onde se rola por vezes sobre a Nacional 8. Dentro desta cidade acontece o mesmo quando se cruza qualquer cidade em qualquer país do mundo. O betão,o aglomerado populacional, as lojas, o tráfego, tudo faz parte de um todo que é fazer uma travessia ou viagem sobre 2 rodas.


Quantas vezes já entrei em Óbidos? De bicicleta é a primeira vez. Sigo intramuros e saio, numa outra porta para voltar a fazer companhia aos pomares de pêra rocha.
Não posso afirmar que seja um percurso maravilhoso enquanto rolo paralelo à linha de caminho-de-ferro e algumas vezes sobre a Nacional. Encanto-me com alguns troços para Torres Vedras mas a distância ainda é longa e os eucaliptos invadem o cenário e minam a minha vontade de pedalar.


Consigo alcançar a cidade e ainda ter tempo para apanhar o comboio em direcção a casa. Prometi dormir longe só um anoite. Terei certamente oportunidade para retornar a este local uma vez mais e terminar esta rota até à Igreja Matriz de Oeiras.


A Grande Rota do Vale do Côa

“Os homens que vão à procura da nascente de um rio estão simplesmente à procura de algo que falta dentro deles e nunca encontraram."


Dia 27abr2017 Soito-nascente-Vilar Maior

A aventura começa com a tentativa de colocar 4 bicicletas num minibus que inevitavelmente esgotou a lotação juntamente com a bagagem dos passageiros. Há primeira tentativa ficava metade das bicicletas em terra, havia a necessidade de reorganizar e criar alguma metodologia que permitisse o aproveitamento do limitado espaço disponível.


Sacos empilhados, os que saem com os donos primeiro ficam o mais perto da porta. Soa no ar que há ovos, repolhos e sem lá mais o quê no seu interior. A tática de sobrepor e ganhar espaço em altura continua com a anuência e muita paciência dos passageiros que vão permitindo que haja um convívio tão perto com as bicicletas mal protegidas. Já não têm as rodas nem os selins, não sabemos nem podemos tirar nada mais.
Já em viagem, percebemos que a maioria são emigrantes reformados e idosos que vieram visitar os filhos no fim de semana prolongado. Regressavam agora e tinham a nossa companhia. A algazarra era total, o Bolacha, o homem da lycra, simulava vozes como se de um guia se tratasse. Durante as nossas conversas, recebíamos inputs sobre toda a região que íamos atravessar. Era como se o minibus fosse um posto de turismo ambulante. Estes bons momentos acabaram por encurtar o longo percurso até ao Soito.
A temperatura arrefeceu imenso. O vento gelado sentia-se nas mãos e faces e mesmo sem termos saído bem cedo da residencial foi necessário recorrer ao casaco impermeável para proteger o tronco. O dia a pedalar prolongou-se até às 21h. Foram muitas as situações que propiciaram mais de 7h a dar aos pedais. Para chegar à nascente do Côa necessitámos de 25 km, quase metade foram com a bicicleta pela mão.


Já passava das 11h da manhã quando iniciámos o trajeto oficial. Não se pode dizer que os caminhos estejam limpos de vegetação, na maioria das vezes há muitas raízes, silvas e erva-rasteira que aumentam as probabilidades de furar. Fui eu o contemplado com 2 furos. Se o tempo começava a escassear, ter que parar para substituir 2 câmaras de ar ainda contribuía para arrastar o dia para lá da hora de jantar.
O percurso está bem marcado, são também percetíveis os desvios para a opção btt/equestre. Continua a ser recomendado o uso do gps porque por vezes não se identifica as marcas da Grande Rota.
A casa de Turismo Rural em Vilar Maior fica bem distante da linha de água. Nesta aldeia não existe qualquer estabelecimento onde seja possível tomar uma refeição. A solução passa por pararmos cerca de 5 km antes em Badamalos. Já dentro do emaranhado de ruas empedradas e casas onde predomina a pedra e o granito, torna-se difícil encontrar o restaurante mesmo com as indicações de 2 habitantes locais. Durante alguns minutos cirandamos por ali na esperança de avistarmos algo que se destacasse daquela cor predominante que era o cinzento.


A ementa não permitia divagações gourmet. Só havia uma escolha possível, mesmo assim pedimos várias travessas. Hoje, no dia em que escrevo estas linhas, e também naquela noite de abril, fico contente que ninguém quisesse partilhar um jarro de vinho. Não sei o que aconteceria depois… Pedalar de barriga cheia não é das melhores sensações, em contrapartida, sabe muito bem pedalar ao lusco-fusco num ambiente de pura liberdade, sentado no selim a observar um castelo bem iluminado que está cada vez mais perto.

Dia 28abr2017 Vilar Maior-Almeida- Pinhel

Os alojamentos em Turismo Rural pautam sempre pela simpatia e pela riqueza dos seus pequenos-almoços. Obviamente que queijo de ovelha e chouriços misturados com leite e café chocalham no estômago enquanto se pedala. Sossega-se a mente sacrificando o corpo, penso.
Continua a surpreender o vale que nos envolve, em Jardo a GR começa a desviar-se do Côa. Seguimos entre muros com um lindo tapete verde pelo meio. Andamos nos topos das montanhas e esta é a melhor maneira de absorver todo o vale inóspito que nos envolve. As pedras são a base do caminho, não oferecem dificuldades quando descemos para o rio, mas em sentido inverso torna-se demasiado exigente para nos conseguirmos manter sentados no selim.


Pedalamos por estas terras xistosas enquanto tal nos for possível sobre as margens do Rio Côa. O rio que corre para o Douro sobre as montanhas do nordeste de Portugal. É mais um dia que surpreende pela beleza da paisagem e diversidade de cenários que oferece
Fomos abençoados com a limpeza e compactação do caminho sem imaginarmos que terminaria junto à água e estaria bloqueado por pedras gigantes. Só aqui a descrição aterradora que fazem desta rota fez algum sentido. O gps aponta e dá-nos uma direção, no entanto, sem a ajuda das marcas vermelha e branca algures na rocha, e acho que íamos molhar bem mais que os pés. Foram alguns metros com a bicicleta pelo ombro e com sorte ao nosso lado pela mão.



Chegou a hora de escolhermos, seguir para oeste e mantermo-nos na margem esquerda do Côa ou optar por atravessarmos uma singular ponte que nos coloca cada vez mais perto de Almeida. Paramos pouco tempo depois, o Bolacha está atrasado, queixa-se da dificuldade em colocar mudanças. Chega, entretanto, a pé. Confirmo que tem a calha do desviador partida e que a corrente por essa razão prende. Encontra-se a relação perfeita onde a corrente pode correr livremente e assim o Bolacha já pode seguir um pouco mais rápido evitando os trilhos.


A fortaleza de Almeida é a razão que nos leva para este. Nesta vila fortificada preparamo-nos para a segunda parte da nossa odisseia. O caminho é fluído, grandes descidas permitem-nos atingir velocidades de 60 km/h ajudando-nos a cobrir grande parte do trajeto até desembocarmos na margem do rio. Tirando a vegetação que cobre os pratos pedaleiros eu diria que estava numa bonita ciclovia.

Muito antes do extenuante empedrado que nos transporta para Pinhel, foi preciso tirar os sapatos para transpor o açude que nos surgiu pela frente. A velocidade da corrente e o piso irregular manchado de plantas verdes são condições que não oferecem segurança para uma condução segura em 2 rodas. O risco não cobria a adrenalina nem tampouco havia necessidade de nos expormos assim ao perigo.

                                                                                                      
                          
Dia 29abr2017 Pinhel-Cidadelhe-Vila Nova de Foz Côa


A paisagem começa a mudar, a nossa visão abarca grandes horizontes com desníveis mais abruptos e terras agrestes.


Entrar no castro de Cidadelhe é voltar à Idade Média. No miradouro, as bicicletas, de cima, entre o Côa e as rochas que o limitam e obrigam a fluir em desfiladeiro, apercebem-se da importância do lugar apelidado de calcanhar do mundo. É Património Mundial da Humanidade, aqui iniciou-se a descoberta do vale sagrado. O tempo congelou nestas paragens, nós meditamos enquanto descemos vertiginosamente para uma ponte que cruza o rio. Não há outra forma de passar. Por entre pedras, cavalos garranos, sobreiros centenários e casas abandonadas progredimos num percurso rápido e deveras agradável que a reserva da Faia Brava nos oferece.


            A mão humana faz-se sentir nestes cumes trabalhados, obtendo com suor, labor e engenho o sustento de muitas gerações. As rochas de xisto não cobrem apenas os caminhos, as encostas deste vale inabitável e esmagador ou o leito do seu rio. Algures, são muitas as que têm gravuras rupestres, dizem mesmo os especialistas que ali se encontra o maior museu ao ar livre do Paleolítico de todo o mundo.
Relembro  agora a notícia que abre os telejornais no preciso dia que chegamos a VNFC.
As gravuras foram vandalizadas, alguém se atreveu a desenhar uma bicicleta junto das gravuras com 10 mil anos.
Quem consegue encontrar palavras para ato tão hediondo?
A borracha dos pneus não deixa marcas, o suor não corrói, os nossos antepassados talvez tenham ficado por aqui porque não tinham bicicletas. Ainda bem que ficaram para nos deixar tão belos painéis de arte. Nós continuamos…



A ousadia não é suficiente para nos acercarmos das muralhas de Castelo Melhor, olhar para cima é o melhor que conseguimos. A cada quilómetro, há medida que nos aproximamos da sua foz, faz tempo que o rio vem alargando fronteiras.
O autocarro parte para Lisboa a meio da tarde. Conforme o terreno permite e os nossos andamentos assemelham-se a ritmos de uma prova do género maratona.

Com o Douro aos pés, conquistamos V.N.Foz Côa sem sofrermos nos ossos as trovoadas e aguaceiros previstos para o dia de hoje. Claro que não se pode dizer o mesmo da arrojada subida que nos leva ao centro da cidade.