Quem nunca subiu a uma árvore não sabe o tamanho da Floresta
29Jul19 - Braga- Mosteiro do Bom
Jesus-Sameiro-Cascata Portela Homem-Soajo 100km
As gotas de água do telheiro da
estação de autocarros de Braga caíam e eram um som contínuo com o qual tentava
adormecer enrolado sobre uma funda de colchão em cima de um banco. Aguardava
que o ponteiro do relógio da estação bate-se as 05h30, hora de chegada do meu
parceiro para esta aventura, o Luís Alves. Entre as ripas de madeira dorme-se
um pouco melhor que no banco do autocarro durante a viagem. A poucos metros de
nós, o céu está ao estilo de uma noite de Outono, com
muita neblina e convidativa a um serão de chá e bolachas.
Não tínhamos pressa para sair
porque o posto de turismo do Sameiro abriria perto das 10h para nos venderem
uma credencial de peregrino. Quando pensamos que temos muito tempo, é durante a
subida ao Bom Jesus e do desfrutar das suas áreas e envolventes que percebemos
que, o tempo que outrora parecia dilatado, agora consumia-se como um fósforo. Cada
espaço até ao Santuário do Sameiro merece ser aproveitado enquanto a subida se
faz gradualmente.
À medida que nos vamos aproximando
de Vieira do Minho, surgem os primeiros momentos em que as subidas precisam ser
executadas a pé (via Augusta). Honestamente julguei que o track de gps se
mantivesse à cota e perto da N103. Puro engano. Algures à esquerda, pela N304entramos no Parque Nacional da Peneda-Gerês. O rio Cávado,
sereno, espraia-se bem diante das nossas rodas.
Neste desvio efetuado à Via
Mariana para chegar à Portela da Cascata do Homem e antes de atingirmos a cota
757, o ponto alto do caminho, várias placas alertam para o pagamento de uma
taxa. Os 2 vigilantes junto ao posto de controlo mandam-nos seguir. A cadência
lenta continua presente e só a escassos quilómetros da cascata é que fluímos a
grande velocidade pelo corredor verde que emana em nosso redor.Aquele pedaço de água retida entre rochas
firmes, merece cada quilómetro a mais percorrido. Nesta altura, a preocupação
era com o relógio. Sabíamos que o Centro Social de Soajo fechava às 17h e que o
esforço para lá chegar iria exigir energia extra. Uma noite sem dormir
manifesta-se em todos os indivíduos, independentemente da idade. No nosso caso,
já pouco saía em cada respiração.
Vamos para os lados do Xurés, neste
território deslizamos velozmente até às termas das Caldas de Lobios. As paredes
das casas quase tocam a estrada, sentimos o povo galego que se desvia para
passarmos. É pelas suas ruas que cruzamos pequenas aldeias perdidas neste infinito
bosque verde.
Seguimos na direção de Lindoso, vamos
a um ritmo vivo, a um ritmo que foi efémero e onde, ao olharmos para um café
bem perto da barragem, percebemos novamente o nosso estado de exaustão. Desconhecíamos
o que estava para vir, mesmo faltando 10 km. Liguei para o Centro e informei
que, com quase toda a certeza iríamos chegar depois da hora de fecho do espaço
que nos iria acolher. Depois de combinado uma forma de contornar este problema,
tornou-se mais fácil ficar parado na esplanada para comer um gelado. Cada
caloria foi gasta para chegar ao topo onde estavam os espigueiros altaneiros de
Soajo.
30Jul19 – Soajo- Ecovia do Lima – Sistelo
(Ecovia do Vez) - Melgaço 87km
Poucos minutos volvidos da nossa
saída e estamos num caminho de cascalho. Vamos a descer na esperança de junto
ao rio encontrarmos a ecovia. O caminho até à margem é tão bera, numa
envolvente tão selvagem, que duvidamos existir algo construído pela mão do
homem junto à água. Não está a ser um troço muito explorado, é talvez pouco
conhecido ainda, no entanto, nota-se que tem existido manutenção da autarquia
de Arcos de Valdevez uma vez que o trajeto se encontra limpo de vegetação.
Uma placa vertical indica o fim da
ecovia. À direita, as rochas sobressaem, são elas a matéria do caminho.
Vagarosamente empurramos as bicicletas até nos determos uns metros acima pois
por momentos a linha do track do gps divergia do trilho que estávamos a
palmilhar. As bicicletas ficaram encostadas enquanto recuamos à cota do rio
para nos certificarmos que nada, mas mesmo nada nos tinha escapado para lá da
vegetação. Junto à água, só avançaríamos empunhando uma catana ou dentro de uma
canoa.
Não foi rápida a chegada a Arcos
de Valdevez. Sobre a ecovia do Vez fomos avançando ao mesmo tempo que
usufruíamos do silêncio que imerge em cada pedaço daquela natureza em estado
quase puro e intacto.São quilómetros de passadiços de madeira que contornam
braços de água, ladeiam encostas e nos fazem subir e nalguns casos, a descer
num espaço pouco largo e que tem de ser partilhado por quem se desloca a pé. É
escorregadio, as placas assim avisam para este pormenor muito importante pois
em caso de chuva ou humidade, uma queda ali pode significar um valente embate
na estrutura que suporta todo o passadiço.
O Luís traz uma bicicleta de gravel
equipada com pneus de ciclocrosse, tecnicamente falando. Na gíria do comum
cidadão, significa que os pneus são finos e em certas ocasiões neste troço, as
rodas entram nas grelhas de drenagem se porventura não se está atento.
A valente subida de pedra
amontoada até ao Sistelo quebrou o resto do ímpeto e arrastou-nos para lá da
hora a que queríamos ou pensávamos chegar para estarmos confortáveis com os
restantes 50km que ainda nos faltavam. Na povoação apenas temos um restaurante
aberto, a fila estende-se para lá da soleira da porta, nesta altura o Luís só
dizia daqui não saio sem comer.
Ficámos pelas entradas de
presunto, pataniscas e azeitonas. Não estávamos em modo turístico. Era urgente
tomar uma estratégia para outra fatigante jornada. Não estando a sentir-se
muito bem, o meu companheiro de viagem resolveu, já na estrada, seguir o
sentido oposto ao meu. Voltou para trás, eu meti os pés nos pedais e girava na
direção de Melgaço. Não ia confortável, as subidas neste dia ainda mal tinham
começado. Sei que tive de parar num café para tomar fôlego, beber algo, picar
qualquer coisa e tentar novamente. Não ligo nada a números, mas sei que em
menos de 10kms já tinha mais de 700 metros de acumulado.
Um ciclista abeira-se de mim numa
subida tranquilizando-me que em breve seria sempre a descer até Melgaço.É numa
bifurcação da estrada que paro numa estação de autocarro para comer algo e
vestir um corta-vento. As pernas tremiam, as batidas do coração, senti-as a
pulsar cada vez que as pernas latejavam.
Foi um ápice até à Pousada da
Juventude. Claro que não gostei que estivesse cheia, que fosse longe do centro,
que era preciso vencer algumas subidas e que o telefone - por não estar
atualizado - me levou a percorrer todo o
itinerário para nada.
Fui salvo pela Sra Teresa, a dona
do alojamento local (casa das Marias), e que presta apoio aos peregrinos. Sentindo
que - entre o tempo que mediava o meu telefonema e a duração do percurso para fazer
2 kms-passaram muitos minutos, ligou-me
para dizer que iria buscar-me
- Não se preocupe, estive a comer
algo para recuperar. Já sei onde mora e vou a caminho.
- Tenho uma carrinha, deve caber,
responde a Teresa.
Cansado mas satisfeito, resisto ao
sono para escrever algumas linhas que prevaleçam e me recordem anos mais tarde
que tudo passa rápido. São 23h, daqui a pouco preciso estar a pé. Tenho 2 camas
no quarto, vai ser uma luta para sair de uma delas.
31Jul19 –Melgaço-Cuntis 110 km
O vento frio sentia-se na brisa
matinal em Melgaço. Pouco após a saída da cidade, ao cruzar a ponte
internacional, surge o passeio fluvial do rio Minho. Começa aqui mais um pedaço
de céu que convida a pedalar devagar e até a ficar em algum dos muitos recantos
que permitem um banho relaxado nestas águas calmas.
Os quilómetros passam, a qualidade
do cenário expande. Sobre o caminho dos defuntos, embrenho-me pela floresta,
entre silvas e fetos, tenho um pequeno trilho para passar. A pé, com a
bicicleta ao lado, quem sofre são as canelas pois é preferível ser esta a parte
do meu corpo a ser castigada do que ficar com meia dúzia de espinhos cravados
em cada roda. Há momentos - quando o espinho que espreita é um bocado maior - que é preciso levantar e carregar a bike.
Estes procedimentos não impedem que continue a sulcar e a vincar a vegetação
contra o solo.
São precisas aproximadamente 5h
para calcorrear pouco mais de 20kms. De repente, quando perscruto o horizonte,
uma manta verde é tudo o que avisto diante de mim. Fica para trás o Camiño da
Raiña e é nas poucas casas da aldeia do Formigueiro que volto a abastecer de
água. As generosas fontes são uma constante e delas brotam sempre água
cristalina e fresca.
O caminho continua a complicar-se
até e bem depois de Fanqueira. Em modo slow-motion vai ficando guardado cada
espaço de pedra onde tento que passem as rodas da bicicleta. A deambular há
horas por locais remotos e sem ninguém, chego perto da N120 onde aproveito para
comer algo. Constato que o fecho da bolsa se abriu, foi-se a comida e as 2
camaras de ar. A mais de 70 kms de Cuntis e com tanto off-road por percorrer,
em cada pedalada sentia que estava a jogar à roleta russa. Já não ia
descansado. Durante várias horas não iria avistar vivalma nem teria a oportunidade
por perguntar se existiria uma loja algures. Lanço o alerta no FB para que
alguém descubra um espaço físico numa distância aceitável.
Por incrível que pareça, tenho um
amigo de férias em Monção. O João Parracho na sua Honda VFR vai fazer-me um serviço
personalizado. Vou-lhe enviando dados com a minha localização. Ao olhar o gps,
a pequena aldeia de Forzáns surge como referência e ponto de encontro. Duas
horas depois, vejo uma churrascaria na PO-225 e para ser sincero, nada mais
precisava. Podia comer ali, por isso, tinha tempo. A distância que faltava para
Cuntis, logo se havia de solucionar.
Na esplanada, entre umas tapas e uns
copos de cerveja, fui abençoado com a oferta do Parracho. Na posse de2 novas câmaras, vou aliviado e centrado no
caminho. Se elas enchem com a bomba da loja do chinês? Isso agora é outra folha
de obra…
Contra todas as expectativas e
indicações de quem sem vai juntando no café, sigo para Cuntis e não Pontevedra
como sugerido. A minha obstinação ajuda-me a chegar quase às 22h00 a localidade
Termal onde pernoitei na pensão Pura.
01Ago19 – Cuntis-Muxia 100 km
Foi mais uma noite mal dormida.
Acabei de jantar perto das 23h, esforcei-me para escrever algo, e possivelmente
cansado como estava, não adormeci em pleno. Umas horas depois, para sair da
cama às 07h não estava nada motivado.
De manhã ao pequeno-almoço como
algumas bananas e pão comprado no supermercado ao virar da esquina. Sobre o pão
ainda consigo colocar um grande naco de tortilha que havia sobrado do dia
anterior ao jantar. No restaurante recomendaram-me uma tortilha pequena cujo
diâmetro cobria o interior do prato. Argumentei que iria optar pelo tamanho médio.
Não passava a borda do prato mas também não se via. Estava perfeito.
Faço-me ao percurso que percorro
lentamente principalmente por existirem muitos ramos e folhas soltas que
cobriam toda a superfície. Vou na direção de Pádron, os peregrinos a Caminho de
Santiago surgem em pequenos grupos. Passam várias bicicletas, a oferta
hoteleira começa a aumentar e o próprio estado dos caminhos melhora. Não é
minha intenção seguir para a Catedral hoje. Tenho consciência que acrescento
cerca de 40kms ao já extenso valor que tenho planeado. O desvio à via Mariana
leva-me para os lados de Negreira, e é já em Brión, uma povoação termal, que
fico envolvido por uma densa folhagem de fetos, num troço coberto de cascas e
folhas de eucalipto. Felizmente não passo mais de 2km até chegar um pouco mais
acima na estrada. Ali mesmo tomei a decisão de deixar o trilho, seguir alcatrão
até Ponte Maceira onde entroncaria com o caminho que vem de Herbón. Na altura
tinha a certeza que por ser mais movimentado, o estado de conservação seria
irrepreensível. Não me enganei.
As horas foram passando e sobre
mim instalou-se uma monotonia que afetava a forma como pedalava. Não estava a
sentir, a olhar, nem a valorizar o que de belo havia pela frente. Mais do que
seria expectável, parava amiúde para tomar algo. Tanto podia ser uma cerveja
como um café com leite, não havia regra.
Recomposto por momentos, foquei-me
na beleza por detrás de cada maravilha que cruzo e num ápice estou a avistar as
águas transparentes da costa de Muxia. Sobre os passadiços de madeira que
cobrem as dunas da praia, sinto o cheiro da maresia enquanto sinto inveja de
todos aqueles que estão a banhar-se nas águas do Atlântico. Faz vários dias que
não têm faltado locais como este para um banho refrescante. Tem-me faltado
tempo disponível para usufruir deles. Ao adicionar o PNPG (Parque Natural da Peneda-Gerês)
e a ida ao Sistelo, extrapolei imenso a dureza desta rota. Agora que a
finalizei, posso dizer que os 2 dias iniciais foram os mais exigentes (talvez
por terem sido os mais cicláveis). A quilometragem diária rondava sempre os
100km. Se não era da inclinação que obrigava a andar devagar, era pela
vegetação que forçava a andar a pé. Também devagar.
Dito isto, tudo se resumia a estar
sentado a pedalar ou lado a lado com a bicicleta. Não tive espaço para
intercalar com outras tarefas que fazem parte da viagem. Escrever, ficar onde
me sinto bem, tomar vários banhos no rio…
Estou no albergue de Muxia onde
tomo uma refeição comunitária preparada por um peregrino alemão. Toda a
logística é preparada de véspera porque às 06h45 tenho o autocarro para
Santiago e ao meio-dia para Lisboa.
Tudo nesta rota foi idealizado
para ser consumido no menor prazo possível e durante a semana para minimizar o
impacto familiar. Confesso, há sempre perdas neste processo de partida, mas
conquista-se bastante nos reencontros, no renascimento de uma vida nova que se
ganha depois de percebermos o que realmente importa.
“But what is happiness except the simple harmony
between a man and the life he leads?”
Diante de mim, atrás de mim,
céu imenso…Altas montanhas.
No século em que vivemos, experienciar a
natureza passando dias em atividades ao ar livre não está ao alcance de todos.
É através da televisão, livros ou do recurso às novas tecnologias que grande
parte da população interpreta a natureza e por vezes a classifica na melhor das
hipóteses de bela mas tantas vezes de perigosa.
Em tempos passados, as rotas comerciais entre
África, Europa e o Médio Oriente eram uma constante. Percorrer de bicicleta a
Rota das Caravanas, é testemunhar uma fusão de culturas e a sua influência nos
povos que hoje habitam do outro lado do estreito de Gibraltar.
Neste desafio não importa não ganhar uma
medalha, uma camisola (com finisher estampado) ou somente um diploma de
participação. Isto que estou a fazer é importante para a pessoa que fico a ser
depois. Reside em mim uma motivação que é silenciosa, que não busca a validação
em matérias externas.
Este
tipo de viagens em autonomia combina com a minha personalidade. Atravessar
parte de um deserto, é um novo marco. Eu não quero passar o dia agarrado a um
telemóvel nem tampouco em frente a um monitor para comunicar ou mostrar algo
que exulte o meu ego. Preciso desligar de muitas situações do dia-a-dia e por
isso vou partir em direção ao Sul.
Eu adoro amigos e ter uma boa companhia. Nesta aventura, por
variadas razões, vou a “solo”. Sou um indivíduo que gosta de estar sozinho
consigo mesmo. Dou-me ao luxo de oferecer-me tempo de qualidade. Só em grandes
espaços abertos consigo escutar a minha alma. É um tempo só nosso, em silêncio.
Não sei se será filosofia, encaro-a apenas como uma lição de vida. Uma ligação
ao divino, a algo acima de nós que me conecta ao meu eu. Para Dean Karnazes, o
excecional corredor de ultramaratonas, a igreja estava no topo da montanha.
Pois a minha está por todo o lado onde se deslumbre horizonte.
Percebo que, ao colocar por escrito os
meus pensamentos, consigo perceber o significado destas viagens para mim porque
em cada pedalada assenta uma filosofia. Para cada ciclista, numa pedalada
assenta uma filosofia diferente.
19Mar19
Casablanca – Casa du Port
Fascinam-me estas ruas estreitas recheadas de lojas que
vendem um pouco de tudo. O meu jantar foi umas sanduiches num género de talho
cuja montra tinha exposto o que se grelhava na chapa. O prato em cima da
balança era sempre o mesmo, aquilo que recebia da montra variava em tamanho,
forma e jamais percebi o que escolhia para comer.
20Mar19 Autocarro
Gare ONCF até Marrakech em camioneta
Cheguei a Marrakech vindo de autocarro desde Casablanca. Esta cidade continua a abraçar o Sol
por inteiro, a revelar-se como o maravilhoso reino das mil e uma cores
independentemente das vezes que já pisei este solo. Aqui não se pode andar
desatento nem tampouco vacilar enquanto se pedala. Do nada, surgem motoretas ou
outros veículos que nos ultrapassam de qualquer forma e raramente passam a mais
de 30 cm. Em Portugal a regra é de 1,5 mt, aqui, neste intervalo, passa uma
carroça, 2 motorizadas e com jeito, uma mão cheia de peões.
Os berberes chamaram-lhe Terra de Deus,
para mim será o início da travessia que me leva a partir para Sul em busca das areias do deserto depois de cruzar
a maior cadeia montanhosa do norte de África, o Atlas.
Enquanto sigo a linha do gps, vou
indagando onde fica o hostel Riadbelko. Percorro souks, ruas estreitas e à
medida que vou entrando dentro da velha Medina, fico rodeado de miúdos. Fui
caçado, querem-me levar ao local. Resisto inicialmente, mas de nada vale ser
teimoso quando não sabemos por onde devemos ir. O número de crianças vai
crescendo (já vejo as moedas a desaparecer), até que na porta vejo o símbolo de
hotel. O nome está correto, mas só de olhar, algo não bate certo. Os 4€ com
pequeno-almoço pagos inicialmente on-line, não cabiam naquela entrada
glamorosa.
As mãos já estão estendidas, os putos confiantes diziam algo
como. Vês?! Vês, como eu sabia onde era?
Toco à campainha, aguardo. Explico que tenho uma reserva e
sou confrontado com a notícia que ali são quartos privados, que pertencem ao
mesmo grupo hoteleiro, mas o dormitório é noutra esquina. Para mim, é noutro
planeta. Os miúdos, atentos, aprendem a nova direção. Vamos tateando aos poucos
as vielas estreitas onde talvez caibam 2 bicicletas. Olho para trás e lá vêm
mais umas crianças. São tantas que um ancião lhes dá uma reprimenda. Intervenho
em nome dos dois miúdos que inicialmente foram os meus escudeiros.
A porta tem o número 14. É uma porta comum sem uma
referência a alojamento. Os miúdos na frente já tocaram à campainha, de maneira
que, com o tempo que demoro a chegar, já a porta está aberta. Parecia uma casa
familiar, desta vez o bando de crianças acertou. Infelizmente fui pouco
generoso, tinha poucas moedas. Fiquei bem instalado e tenho a sorte de estar no
mês de março pois existe muito menos gente por todo o lado. Com 3 quartos a 8
camas cada para apenas 1w.c e duche, de certeza que nos meses de verão, dá uma
grande caldeirada
Os couscous por aqui existem em quase todas as
granulometrias, compram-se a granel e vêm em sacos similares aos da ração para
animais (com o devido respeito, claro). Este vai ser o meu superalimento para
os dias de escassez. É fácil de cozinhar, de transportar, mistura-se tudo nele
e fornece uma boa energia.
A praça Jemaa el-Fna mantem o mesmo carisma, não interessa o
dia ou ano. Ela serve como ponto de referência para localizar uma drogaria onde
sei que irei encontrar álcool à Brulet. Este será o combustível que irá ser
queimado no meu stove (fogão) ao cozinhar nas próximas semanas.
21Mar19 Marrakech – Taddert -98km
Tudo foi montado na bicicleta de véspera. Urge, a vontade de
pedalar já mexe comigo. A proximidade do Atlas sente-se na brisa matinal e
obriga-me a sair com mais uma camada de roupa no tronco.
Uma ciclovia está marcada na estrada principal que vai para
Ouarzazate e é sobre ela que sigo durante grande parte da manhã. Nos terrenos
castanhos que surgem amontoam-se pedras e lixo amiúde. A imponência do Atlas
sobressai no horizonte, os seus topos cobertos de neve alimentam a minha sede
de chegar cada vez mais perto.
Seja qual for o tamanho da montanha, ela pode ser vencida. As
rodas movem-se, as crianças sucedem-se e surgem de cada pedaço de pedra ou
dobra de terreno. Tentam o diálogo e estendem as mãos para a berma da estrada para
sentirem o toque de quem passa. Alguns são afoitos, querem tirar fotos, querem
dirhams, “stilos”. Enfim, querem tudo aquilo que muitos outros viajantes que
aqui passaram lhes deram por julgarem que estavam a fazer uma boa ação.
Nas grandes cidades conseguem ser muito exasperantes.
Durante o caminho quase tive de parar devido a um cão que estava junto a uma
parelha de miúdos. Como não o fiz, resolveram atiça-lo. “No passa nada”, o cão
não se mexeu. Tenho consciência que isto não é nada, quando estiver nas aldeias
do deserto e mal conseguir rolar, sei que vou ser um alvo fácil das crianças e
das pedras que lançam.
Independentemente do tamanho da povoação, todas elas têm
muitos recantos com apenas 2 m2 onde tudo se vende. Aliciar quem passa é uma
das garantias para angariar clientes. Eles chamam, mostram as tagines…
Já rolo no alcatrão há 40kms, nunca vi tanta loja de
reparação de automóveis, de motos, pneus e alimentação juntas. Para parar, ou o
faço junto a um grande aglomerado de pessoas, ou então, se prefiro comer em
paz, procuro um local isolado. Que ingenuidade a minha. Estou à sombra de um arbusto
sem habitações próximas e onde julgava que nada se passava. Em segundos sou
abordado por mais que um indivíduo. Todos muito gentis, a darem as boas vindas
ao seu país, mas a dialogarem numa língua que não conheço.
Chego a Toufliht cedo e aqui sei que existe alojamento. No
meu planeamento, a etapa só terminava 30 kms depois com a possibilidade de vir
a montar tenda. Era cedo, o alojamento é caro e porque vou autónomo, avancei.
Todas as vias de comunicação estão em obras. Ao ritmo das carrinhas de turismo
vou rolando ente nuvens de pó e buracos. Em cada paragem, nas lojas onde compro
água tento sempre obter indicações sobre o pouco que existe pela frente.
Algures, entrincheirado ente 2 taludes gigantes de pedra, um comerciante
sossega-me dizendo que existe um Gîte d´étape da Associação para o
desenvolvimento sustentável de Taddert. Tem, por mérito próprio, o melhor
terraço da aldeia. São às dezenas as tabancas para jantar e comprar aperitivos
como bolachas ou frutos secos. Tomei a minha refeição no local em frente por
sugestão de Mohamed, o rapaz que também me indicou o Gîte.
Para amanhã a primeira refeição será “almofadas de couscous
salpicadas de sardinha confitada em tomate e óleo”.
22Mar19
Taddert – Camping selvagem junto Aït-Ben-Haddou– 86 km 1200mts
O frio matinal é
sempre uma constante, só melhora mesmo perto das 12h. A subida do Col du Tichka
foi vagaroso. A estrada que deixou para trás Marrakech a
torrar ao solsobe para lá dos 2000 e tal metros de altitude e com
vento, demora sempre algum tempo. O cume é um miradouro por excelência e também
um local onde se comprar muitas pedras e outras bugigangas que só o turista
compra. A mim, o berbere tentou trocar aspirinas por pedras…
As paisagens só melhoraram quando saí da estrada de Ouarzazate
e desviei para Telouet. Este local foi um entreposto de caravanas de camelos
centenário situado no Alto Atlas onde muitos comerciantes paravam. Faz parte de
uma rota chamada “rota das Kasbahs” pelo que hoje, tirando os alojamentos para
turistas, pouco mais têm para oferecer...No caminho que segui para sul, vi
aldeias bem mais impressionantes.
O verde floresce nos vales onde casas se erguem em tons que
se misturam com o castanho da terra. É com este material que os marroquinos
constroem os seus abrigos. O edifico sempre mais bem conservado é o minarete.
Cada aglomerado de casas parece ter o seu, e curiosamente hoje, ainda estava a
ouvir os versículos do Corão de uma aldeia, e poucos quilómetros depois, na
aldeia seguinte, oiço novamente o mesmo som. Hoje de manhã, ainda o sol não
tinha nascido e já estava a acordar com este ruído (julgava eu que os galos
eram os primeiros a cantar…)
Há uma diferença significativa relativamente à oferta que
existe na estrada de Marrakech para Ouarzazate onde se pode comprar sempre algo
em todo o lado. Neste desvio, ainda que as aldeias sejam mais e maiores, isso
não se verifica. Surgem imensas kasbahs com oferta de alojamento, todas elas
turísticas e apelativas. Resolvo um problema mas continuo sem poder abastecer
de géneros e por essa razão procuro uma loja de alimentação para mais à frente
montar a tenda e fazer camping num qualquer espaço de Marrocos. A orografia
está favorável. Sobre o isolamento, já percebi que nunca se consegue realmente
estar muito tempo sozinho. O frio não tarda começa a sentir-se, no entanto,
preciso esperar que anoiteça. Não faz muito tempo que começo a ouvir cabras (daquelas
que trepam as paredes mais incríveis cravejadas de pedras). Galgam a elevação
do terreno que me oculta e obviamente que as minúsculas folhagens em meu redor
não serão uma cortina para estas criaturas.
- Quem vem atrás do rebanho? O
cão? Sim, mas é “petit”, o chien não assusta. O pastor é um árabe já bem idoso,
mas aos seus olhos também nada escapa. Posso estar tranquilo diz ele, “aqui nem
as moscas te chateiam”. Já estava a imaginar um pastor mais jovem a colocar nas
redes sociais a localização de um “alien” e em pouco tempo ver-me rodeado de
crianças curiosas.
23Mar19
Camping selvagem junto Aït-Ben-Haddou – OuarzazateBivaque le Palmeiral 40km 15mts
Foi difícil adormecer a noite passada. Sentia o imenso vento
que soprava ruidosamente contra a tenda. Algures de madrugada acordei com
imenso calor e estranhei porque não é normal para as temperaturas médias que se
fazem sentir nesta altura do ano nesta região. Fora da tenda o ar está quente,
nem uma brisa de vento. Aqui, enquanto olhava o céu, só via nuvens, nada de
estrelas. Já não preciso de despertador, os sons que vêm da direção do minarete
ouvem-se primeiro que a minha hora de levantar.
Dou meia dúzia de pedaladas e estou no coração de uma kasbah
fortificada construída em argila, localizada num vale deslumbrante. Chama-se
Aint Ben Haddou e é Património Mundial da Unesco. As suas muralhas são o mais
belo Ksar a sul de Marrocos. Como cheguei muito cedo, os comerciantes ainda
estão a colocar os objetos pelas ruas, alguns locais limpam o pó dos caminhos
de terra que levam à fortificação e alguns turistas passeiam isolados.A
aldeia que está no outro lado da margem tem imensa oferta de hotéis e
restaurantes com várias especialidades. Isto só prova que este local é com
certeza muito visitado e provavelmente a esta hora, os turistas ainda estarão a
preparar-se para tomarem o pequeno-almoço.
A estrada, praticamente plana, atravessa pequenos oásis até
chegar a Ouarzazate que se situa nas “portas do deserto”. Há de facto muito
cascalho, muita tonalidade castanha e um deserto que se estende lá mais para
sul. O rio com o mesmo nome separa uma cidade gigante em tamanho e contrastes. Cruzo
a ponte para atravessar o largo leito do rio que corre seco e procuro conhecer
mais um pouco deste local tão famoso pela gravação de dezenas de filmes de
Hollywood. À entrada, logo após o controlo policial e o desvio para a estrada
de Zagora, é bem visível as enormes portas e o outdoor a anunciar “Cla
Studios”.
Tenho conhecimento da existência do oásis Fint a cerca de
10kms e, embora não saiba se um dia voltarei a estas paragens, prescindo da
visita a este “jardim” para poder descansar e usufruir de ter feito apenas 40 kms
hoje.
Excetuando
Marrakech, esta é, ao sul de Marrocos, a única cidade onde posso encontrar uma
loja de bicicletas. Neste género de travessia, transporto por norma 2 câmaras
de ar em locais de fácil acesso em caso de necessidade. Foi anteontem que me
apercebi que perdi uma delas. Tenho 1000 kms pela frente num território árido e
inóspito e com passagens por troços no deserto carregados de pedras e espinhos.
Não vou arriscar (mesmo tendo tubeless). Com vários bancos pela frente,
aproveito para encher a carteira. Se até aqui, todos os pagamentos foram feitos
com moeda local e não multibanco, mais a sul não será diferente. A uma loja de
distância vejo várias bicicletas paradas e pergunto se têm câmara para roda
29”?
- Talvez só em Marrakech – diz
o árabe.
Vejo muitas bicicletas a
circular de roda 700C, não tens nada? – Respondi.
- Sim, tenho estas finas.
Numa emergência vão servir certamente. Conto-lhe da
infelicidade de chegar cedo à cidade e o Youth Hostel só abrir às 17h00. No
mesmo instante diz-me que é amigo do Hussein, o dono do camping do Palmeiral
que fica num local muito sossegado com cozinha e tudo.
Sou bem recebido pelo
proprietário que me pergunta em que local do parque de campismo quero ficar? Ao
responder prontamente cometo um engano e digo “le plus chére”. Liberto algumas
gargalhadas do árabe e do casal de turistas sentado ali perto debaixo da tenda
berbere.
- Queres tu dizer, le moins chére?
- Oui, oui, J'ai regardé derrière ecrit“bivouac lots of stars”.
- Quanto costumas pagar?
- Bem, em hotel com P.A incluído cerca de 70Dh
O Hussein começa a somar de cabeça, pergunta se quero duche e soma novamente. Tudo
40 DH, achas justo, pergunta.
O árabe agora pareço eu, não regateio, mas digo que é um preço como em Portugal.
Trocamos umas palavras, convida-me a beber o chá com muito açúcar e baixa-me 10 dh no
preço final. Duas horas depois, já com o saco cheio de compras, pergunto-lhe se posso usar
o fogão para cozinhar? Se lho tivesse dito antes, já tinha ele mais um item para somar.
Dentro da cozinha estão 5 mulheres dispostas assim: 2 estão sentadas, 2 à roda do fogão
e a outra encostada. As galinhas estão bem coradas e o cheiro a caril deixa um agradável
cheiro no ar. É nesse ambiente familiar que estou eu com o meu minúsculo tacho, ávido
por cozer uns ovos e juntar umas salsichas acompanhadas de noodles. Consegui terminar
o meu cozinhado primeiro. Pedi licença e fui até à tenda apreciar o manjar. É ao voltar
que novamente sou confrontado com uma realidade diferente da minha. Abeira-se de mim,
julgo que o filho varão do Hussein, e diz-me para deixar o tacho que essa era a função
das mulheres. Justifiquei-me dizendo que como é a minha gamela, tenho de ser eu a
limpá-la.
Naquele espaço, enquanto bebia o café expresso, falámos abertamente sobre a
hospitalidade marroquina. Nem consigo acabar de beber o café. Tenho de começar a
correr porque tenho a roupa a secar.
Volto e digo-lhe. Como é possível que, tendo vocês 300 dias de sol por ano, hoje chove?
- É a mudança da estação, passámos de Inverno para a Primavera (Isto é a minha
interpretação na dificuldade natural de entender a língua francesa)
24Mar19
OuarzazateBivaque le Palmeiral –AGDZ
(camping Park 68 kms
Chove mesmo muito por aqui. Bastou uma noite para tudo ficar
alagado e os terrenos transbordarem. Cada passada que dou dentro do camping, é
meio sapato atolado. Lá fora, nas zonas mais baixas da estrada, não posso
pedalar, a água chega aos pedais. Ou levo balanço ou avanço com pequenos toques
na pedaleira para ultrapassar as correntes de água que se formam.
Saí tarde, dei um forte abraço ao Hussein e parti com a
tenda encharcada no saco de viagem. Precisei reforçar o corpo com mais roupa, meias
e luvas para o frio. É domingo e nada parece fechar nesta terra. Bebo mais um
café e sigo sul. A paisagem é surreal, quando vejo os castanhos-escuros a
tender para o negro a cobrir as montanhas, recordo-me dos troços que me levaram
em 2014 de outra aldeia marroquina até Agdz.
É raro não ser saudado pelos locais, motocicletas e outros
ocupantes da estrada. Há um respeito por quem se equilibra numa bicicleta e faz
dela o seu meio de locomoção usando imenso do seu esforço e perseverança para quer
ver cada pedra deste caminho. Aproximadamente aos 40 kms avisto algumas casas (não
acreditava que existisse algo até ao final da jornada). Paro no café Atlas não
por necessidade, mas porque adivinhava no horizonte algumas horas em ritmo
muito lento. No início da subida observo um pequeno grupo de crianças. Já os
oiço gritar “stilo, stilo”. Avanço devagar sempre atento aos pequenos gestos
quando, um deles com uma pedra na mão, ameaça lançá-la. Instintivamente
inclinei ao capacete para receber o impacto. Algo me protegeu e não foi o
capacete, a pedra não foi lançada.
Ultrapassado o maciço rochoso, foi aproveitar as sucessivas
curvas e contracurvas em alta velocidade sempre com cenários grandiosos até ao
camping de Agdz onde aproveitei para secar a tenda.
25Mar19 AGDZ
(camping Park) - Zagora 106 kms
O track volta a seguir muito perto da N9. O isolamento deste
caminho é o suficiente para não ouvir qualquer ruído que venha do lado da
margem onde passa o alcatrão.
Seguir o vale do Draa, poder ouvir toda a vida
que emana e ter o prazer de ver tanta extensão de palmeiras, é um dos
privilégios que se tem quando se viaja em bicicleta. Estou longe das rotas
turísticas, são raras as pequenas aldeias, principalmente as que podem dar
apoio alimentar. Carreguei a Surly Ogre com 4 lt de água tentando seguir a um
ritmo constante porque assim que a bicicleta embala, tudo vem a reboque. Não
tive o prazer de deslizar neste percurso maioritariamente de terra batida com
troços em mau estado. Há obras de melhoramento da via o que tudo indica que em
breve, grandes troços desta etapa serão alcatroados.
Normalmente, nas viagens que faço tento que a quilometragem
até ao final da manhã seja pelo menos metade da etapa total. Para territórios exigentes
planeio não ir além dos 80 kms. Tenho que parar de pedalar mesmo quando sinto
que posso pedalar. A etapa de hoje tinha 109 kms, preciso rolar esta distância para
ficar em Zagora. Neste momento são 14h00 e não tenho 40km. O vento não me sopra
pelas costas, sinto-o como um bafo fresco que disfarça o tórrido calor.
Cada aldeia tem a sua vida própria. Para mim, que estou de
passagem, quando olho para lá das paredes castanhas, muitas delas em ruínas, há
uma altura em que, depois de cruzar tantas, parecem todas iguais. Algumas estão
cheias de crianças que se amontoam em grupos na ida e vinda da escola. Muitos
têm bicicletas e aos poucos foram-se juntando a mim 5 miúdos colados à roda. Obviamente
que não iam calados, eles tentam sempre obter algo. Preparo uma brincadeira e
em 3,2,1 faço um sprint para descolar (com os quilómetros que já tinha em cima,
sinceramente já não tinha paciência). A somar a tudo isto, é apaixonante
perceber que todos os miúdos, mesmo os mais pequenos, acenam e gritam bonjour.
Os meninos continuam a estender a mão para sentirem o toque em movimento. Um
dia inteiro nisto, dezenas de vezes, pode tornar-se cansativo. E foi.
A 15kms de chegar a Zagora, entro na N9 e sigo na pista
reservada aos ciclistas, motos e carroças. É aqui que procuro um hotel para uma
recuperação mais eficaz, sentir o conforto de uma cama sem estar preocupado em
ter que estar a vigiar os artigos eletrónicos que deixo a carregar ou mesmo a
bicicleta que repousa, presa de forma precária à tenda na maioria das vezes. Nesta
cidade tive mesmo que comprar outra embalagem de protetor solar porque
tornou-se necessário duplicar a aplicação diária para evitar ficar com mais
golpes de calor
26Mar19 Zagora
-Tagounite-M´Hamid 105 kms + 15 carro
de apoio + 20kms em excesso por seguir fora do track.
Foi um inico de etapa duro. O caminho era plano, tinha muito
cascalho e estava em mau estado. Segui nesta longa etapa uma linha contínua de
postes de eletricidade cujo fim não consegui avistar. A estrada N9 não andava
longe, eram alguns palmos de terra e um leito de rio seco que nos separavam. Nada
por ali passava, exceto eu. Até ao momento em que cheguei ao alcatrão, relaxei
mãos e punhos para brevemente entrar noutro trilho que me levou a andar a pé
sobre as dunas de areia e pedras amontoadas. Perscrutava 360º de horizonte
desértico em cima de uma rocha quando vejo passar uma carrinha a uma velocidade
que indiciava bom caminho. Saí do track, não tinha a estrada registada mas como
seguia na mesma direção, foi a opção que tomei para sair daquele inferno
pedregoso.
Em Beni Senguin (que apenas deve aparecer nas cartas
militares), procuro água. É comum haver uma pequena bilha com uma caneca em
alguns locais para quem queira servir-se. Numa pequena loja de 4m2 só tinha a
opção da bilha, não arrisquei. Sigo em frente sem esperança de encher os bidons.
Já levava 65kms e ao aperceber-me de outra “mega loja “cheia de miúdos,
questiono se têm água além do tradicional bonjour , ça va?
Abastecido, continuei a seguir o mais para sul possível e
bem junto com dos marcos de fronteira da Argélia. Foi aqui, ao seguir uma nova
linha de postes de alta tensão que cometi um erro que me custou mais 20kms. A
cartografia do gps não contemplava aquele caminho e a paisagem parecia ter sido
tirada de Marte. A direção era a que pretendia para chegar mais longe do que planeado.
O caminho voltou para norte levando-me a fazer uma espécie de U para me levar a
Tagounite, local que queria evitar. Faltavam 28 kms, o vento levantara-se em
força, a velocidade da bicicleta não passava dos 8km/h e nem a descer a
situação melhorava. Já sentia as poeiras na garganta e nos dentes. Com os
efeitos de um dia tão exasperante, estava realmente a ser difícil. Dava para
chegar ainda de dia a M´Hamid mas ia ser um verdadeiro desafio. Há um jeep que
se aborda de mim na berma da estrada e me questiona se estou bem? Passaram 30
min e uns metros adiante, uma pick-up encosta.
- Vais para M´Hamid? Já tens
reserva para dormir? – Pergunta o condutor.
- Vou e não tenho reserva
- Boa, vens comigo para a
Kasbah, um hotel onde trabalho.
Cá estou, com um bom preço para
meia-pensão, salvo, não poderei dizer são porque acho que já não o sou.
P.S. íamos 3 pessoas a bordo da
carrinha. Eles afirmavam que o vento q n era normal e que por vezes aquilo
acontecia. A bike ia deitada na bagageira da Pick-up
27Mar19 -M´Hamid-Dunas Chegaga – Algures no deserto 63
kms
Nesta minha estadia no hotel Kasbah, comi e dormi como um
rei das arábias. O local é muito tranquilo e como incluem as refeições, não se
torna necessário sair deste complexo. No dia seguinte, já na povoação, comprei
5 garrafas de água de 1,5 lt, algum pão e carreguei a bicicleta para partir
para o deserto. Ia para Oeste, e confesso que nos primeiros quilómetros senti
algum respeito e insegurança devido às imensas dunas que me forçaram a empurrar
a bicicleta. Foi assim durante algum tempo e uma constante ao longo de toda a
etapa.
Há uma altura em que são imensas as marcas de estradas
trilhadas por caravanas ou jeeps. Passam em muitos locais diferentes, no
entanto, todos os caminhos se tornam difíceis. Existem muitos bancos de areia,
lombas sucessivas e muita pedra espalhada. Por vezes estou a seguir uma dessas
marcas no terreno e tive momentos em que estive muito para lá da linha do track
que devia seguir. Avançava então na diagonal entre a minha posição e um ponto
onde intercetasse o track. Percebi que é muito fácil perdemo-nos numa imensidão
sempre igual.
Só sinto o calor quando paro para tomar algo. Está abrasador e as
moscas não me largam. Tal como agora que tento escrever. Conseguir manter a
caneta no papel, torna-se um exercício.
Julgo que o highligth de toda esta viagem é o momento em que
me encontro com um beduíno a sós com a sua mula. Ele teve sorte, eu vinha numa
das “diagonais” para chegar ao caminho que queria. Apontou para a garrafa de
água e fez sinal com a mão para a boca. Dei-lhe o bidon. Primeiro, desconfiado,
cheirou e voltou a apontar para a garrafa de 1,5 lt
- Não, preciso dela. Respondi e
exemplifiquei como se bebia. O momento ficou mágico quando o homem começou a
beber como um atleta. Arrotava e ria-se, satisfeito.
Estas partilhas são únicas porque a linguagem que usamos é a
universal. Fazemos gestos, ajudamos quem precisa não olhando à cor nem à
nacionalidade e tampouco ao local onde estamos.
Para lá dos 50 kms, observo mais camelos. Avistei alguns
nesta travessia, mas aqui era diferente. A paisagem mudara, havia muita
vegetação rasteira, a cor passou de amarela para o castanho e surgiam amiúde
tendas berberes. Havia um acampamento perto. Estava nas dunas de Chegaga e sair
deste ermo tornou-se noutro desafio. A areia era muita, mesmo muita, só
empurrando a bicicleta. Um nómada curioso vem ter comigo oferecendo-me uma
laranja para o caminho. Numa espécie de diálogo diz-me que seriam só mais 5kms
assim. Ziguezagueei procurando terra seca/dura por onde pudesse pedalar. O
horizonte durante alguns minutos tornou-se compacto facilitando a deslocação um
pouco mais para oeste.
Continuam a
passar muitos jeeps. Os turistas de dentro parecem divertidos, os marroquinos
ao volante, saúdam-me. Enquanto ando, penso onde devo colocar a tenda agora que
vejo mais vegetação e algumas árvores para me protegem do sul e do Siroco (vento
quente, muito seco, que sopra do deserto do Sahara).Não adianta esforçar-me
mais para chegar ao lago Iriki seria uma demanda esgotante. Estou numa elevação
de terreno bem protegida por um pinheiro a escassos metros do caminho onde por
vezes circulam os jeeps. É curioso pois passam e nem dão conta que aqui estou e
é precisamente por isso que aqui parei para estacar a tenda.
Este é um
daqueles lugares que quando estamos a olhar, não falamos. Tenho o privilégio de
ver o por-do-sol, olhar para o outro lado de manhã, e vê-lo nascer.
Acabei o dia de
ontem a andar e preparo-me para mais uma longa jornada do mesmo modo. Extensas
áreas de areia continuam a manter o meu andamento por volta dos 4km/h, um valor
baixo porque torna-se penoso empurrar quando as rodas e os pés se afundam. Noto
que estou mais leve cerca de 4,5 lt de água que entretanto se foram. Já dei tantos
passos a calcorrear esta areia que em determinada altura quando sinto uma
ligeira diferença de pressão no terreno, sei que posso pedalar alguns metros.
Pelos meus cálculos tinha acampado a menos de 15kms do lago Iriki. Entro numa
zona salpicada de branco, ao longe tenho a sensação de ver água. Sinto
inclusivamente uma brisa mais fresca. Por muito que pedale, no horizonte fica
sempre aquela mancha que julgava ser água. Finalmente apercebi-me que circulo no
leito daquilo que no passado foi um lago (há 25anos)
Da janela aberta
dos jeeps que passam, continuo a ouvir uma voz dizendo. Ça va bien?
Um jeep permanece
encostado alguns metros à minha frente. A sul, sobre as dunas, está o
navegador. Chegamos ao mesmo tempo à viatura. Olho a carta militar que a francesa
traz consigo e aponto-lhe onde estamos.
Volto à imensidão
do cascalho, todos os caminhos apresentam socalcos. A falta de manutenção e a
velocidade a que os jeeps percorrem os trilhos, quebram todo o terreno por onde
passam. Para a bicicleta, a melhor velocidade ronda os 10km/h.É um saltitar constante, a trepidação quebra
os pulsos por completo. Uma ford-transit que vejo algures, passa o tempo
encostada. Debaixo dela, um marroquino, os outros passageiros estão divertidos e
vão-me cumprimentando quando passo.
Há muito que vou a
navegar para oeste. Ao longe já vejo Foum Zguid e um marroquino que salta de
uma árvore para pedir água. Neste momento os 8lt já foram e nem saliva eu tinha
para lhe dar. Passo o segundo controlo militar fronteiriço. Desta vez existe
uma cancela e um sentinela que manda-me encostar. Trocamos algumas palavras
sobre segurança em Marrocos enquanto me oferecem um chá de menta bem quente e
bem doce, como é normal.
As tabuletas
surgem com periodicidade a anunciar hotéis, albergues, parques de campismo. Não
vai faltar escolha por aqui. Não avanço até ao centro, fico-me pelo hotel Iriki
com um preço razoável para meia-pensão (25€). Nesta localidade, como sabem que
estão isolados, todos os preços rondam este valor que é elevado relativamente à
média.
29Mar19 - Foum
Zguid – Tissint 69 kms
Passam 2 horas do
meio-dia, sentado na cama sou inspirado e forçado a ouvi os versos do Corão que
brotam do minarete a metros da minha janela. A vila de Tissint é pequena e tem
a seu lado uma enorme montanha. Nenhum som se perde por aqui. Por esta hora já
devia ter muita fome, mas o pequeno-almoço do hotel Iriki foi abastado (comi 2
pães com o diâmetro de um prato acompanhado de café e leite)
Pouco posso assinalar
sobre a diversidade ou beleza deste percurso. A areia não assentava devido ao
vento que era muito bem-vindo desta vez. Deseja-se frequentemente a outros
ciclo-viajantes que o vento esteja sempre pelas suas costas. É comum os locais
que se deslocam de moto usarem um turbante invés do capacete, e foi, de
repente, que tive a ideia de ter um para mim. As cores garridas estendidas em 2
cabides na rua sobressaíam dos tons ocres das paredes. Negoceio o preço e
aproveito para questionar da viabilidade da pista que quero seguir amanhã.
Trago indicações que poderá existir um bloqueio no caminho em Jabel Bani devido
a forte controlo militar. O rapaz da loja, conhecedor de futebol e dos nomes
dos famosos jogadores, falou em Nani e tive que explicar-lhe que ambos eram
parecidos. Ensinou-me a colocar o turbante e confirmou que devido a um
aluimento de terras, não seria possível a passagem. Alguns minutos depois,
estava no centro da vila à procura de um camping. Surgem-me 2 hotéis
(chamar-lhe-ia outra coisa), e após indicações sei que posso acampar no único
espaço reservado para o efeito, o hotel Kasbah.
A 20mts do hotel,
numa zona em obras, sou retido por um polícia que me pede o passaporte. Dirigiu-se
para junto da sua viatura, começa a tomar apontamentos, pergunta-me algumas
coisas, e volta 5min depois. Tento perceber a razão da preocupação e indagar
pelo bloqueio do caminho que quero tomar.
- É uma zona militar, interdita
a passagem, diz-me.
Estou perto da
fronteira com a Argélia, é normal a delicadeza deste assunto e por isso amanhã
irá ser necessário uma volta maior por estrada para chegar a Tata.
O hotel kasbah
tem outra apresentação. Com piscina e uma vista maravilhosa sobre o rio,
convida a ficar. O simpático rececionista mostra-me o espaço de terra ao lado
das espreguiçadeiras e piscina e diz que posso ali pernoitar por 100Dh. Vou
pagar para não ter privacidade, pensei. Voltei ao centro da aldeia e por 50Dh
entrei noutra dimensão. Descrever o espaço é muito difícil, a primeira sensação
que tive foi da semelhança com um estabelecimento prisional. Bem, não tem
espelhos (parece raro por estas latitudes), mas tem lençóis e água quente (coisa
rara também).
30Mar19 -
Tissint – Tata 70 kms (estrada)
Eram 04h da
madrugada quando acordei. Tentei dormitar um pouco quando começo a ouvir um
impacto de algo metálico que era lançado para o chão. Pelo som percebi que
estavam a lançar bilhas de gás do camião. Eles estão habituados a fazer isto,
não vai ser agora que estou aqui que isto vai rebentar, pensei. Abro a janela
enquanto o sol se descobria atrás da enorme montanha. No rés-do-chão permanecia
um amontoado de bilhas azuis do gás. Tomo o pequeno-almoço, preparo a bicicleta
e vou até às cascatas de Tissint que estão no caminho para Tata.
Estou no inico do
fim de semana e avisto alguns familiares que aproveitam a beleza do lugar. Na
rotunda, onde ontem o polícia me pediu o passaporte, permanece o jeep parado.
Passei ali várias vezes para ir ao hotel Kasbah, o único sítio onde poderia ter
wi-fi pois nem os dados móveis funcionavam na aldeia. Nas horas de maior calor
o polícia repousava na cadeira sob as arcadas dos edifícios. De manhã cedo
estavam 2 novos policias de serviço que já deviam conhecer-me pela bicicleta e nada
me pediram.
A paisagem
durante os 70kms do itinerário sobre a N12 não cativa e é com a ajuda do vento
que por vezes não necessito de pedalar. Não tinha planeado ficar por aqui. À
medida que cruzo as suas ruas sinto o burburinho das motos Docker de 50cm3
cheias de tunning e com cestos de palha. Cirandam por todo lado.
Aquilo que mais
me fascina nesta zona do Magreb são as cores e os cheiros. Tenho vontade de
comprar e provar muita coisa, e só o evito fazer por viajar em bicicleta. Sei
quanto custa uma intoxicação alimentar ou diarreia num país assim e mais
complicado se torna quando viajamos sozinhos.
Pão torrado em
fornos a lenha é algo muito procurado. Pego um, coloco quente na mochila e o
cheiro vem atrás de mim até ao hotel. Mesmo agora, no apartado espaço do meu
quarto, é o cheiro a pão acabado de cozer que funciona como ambientador. Há de
tudo e cada loja assemelha-se a um centro comercial. Percorro um quarteirão e
posso ter de tudo:Bancos, bugigangas, eletrodomésticos e ervas aromáticas,
motos, casa de chás e tisanas, de roupa, de especiarias; de frutos secos, de
tecidos, hotéis, bijutaria, livraria. Na maior parte delas o conceito é que
cabe um pouco de tudo dentro de cada uma.
Abri os olhos
antes de ser madrugada. Eram 06h da manhã e no saguão do hotel os outros
hóspedes já falavam como se estivessem na rua. Precisava sair mais cedo que nos
dias anteriores porque sabia ter uma longa etapa pela frente. Agora que acabei,
não julguei que fosse tão dura. Imitek está a cerca de 30kms e era tão pequena
que apenas consegui comprar pão, água e um maruja (sucedâneo de chocolate). O
vento estava fortíssimo e desta vez soprava de norte. Manter uma cadência certa
tornou-se cansativo. Parava de tempos a tempos para fotografar a paisagem e
ganhar fôlego. As montanhas que tenho pela frente apresentam-se de cor
diferente. Deixo a estrada aos 50kms para entrar num troço de gravel em
excelente estado que ondula e serpenteia por toda a vasta área que vou
percorrendo lentamente. Leva tempo a avançar alguns metros. Aproxima-se o final
da tarde, ao olhar o gps julgo estar perto de Tidou mas tudo aponta que terei
de ultrapassar o maciço montanhoso que me ladeou quase todo o caminho. Não
queria acreditar, era uma subida extensa para a qual não estava mentalmente
preparado. Já no topo, depois de várias curvas fechadas em contracurva, decido
manter-me sobre a estrada enquanto ignoro a linha do track que atalha a
montanha. Na minha inconsciência, sem ter a estrada marcada, julguei que a
mesma só poderia levar à aldeia. O sentido da descida era o oposto do que
queria, mesmo assim, residia em mim a esperança de nos próximos curvas a
situação se resolver. No vale vejo bem a aldeia à minha direita e do outro lado
a estrada que continua. Mando parar um dos camiões que anda a transportar pedra
e questiono o motorista para onde vai a estrada?
- Vai para Tiznit.
Este era o
destino final de toda a viagem. Não queria, não podia perder as muitas
povoações berberes que tinha planeado visitar. Questiono se pode colocar a
bicicleta na galera e levar-me montanha acima. Não tenho sucesso, em linguagem
árabe não vamos a lado nenhum. Amplio o zoom, olho melhor para o écran do gps e
é possível seguir uma pista de terra até Tiouadou. As teleboutiques (onde se
compra comida) estão fechadas. Há 3, dizem-me os miúdos que me levam a cada uma
delas. Explicam-me que os donos estão na mesquita.
Todo o tempo é
bom para escrever e é neste tempo de espera que o faço.Há um bom albergue com
restaurante na aldeia mas eu decidi que quero ficar no oásis que sei existir ao
longo deste vale. Carrego de alimentos e água e busco entre as milhares de
palmeiras um pedaço de terra para que possa usufruir de um pouco mais de
tranquilidade. Enquanto houver luz do sol, não deixarei de ouvir os pássaros
nem a voz dos homens e mulheres que cultivam estes campos férteis, usando
sabiamente um canal de rega com 16cm de largura por onde corre a água para
alimentar toda esta vegetação.
01Abri19
- (Oasis wild camping) entre Tiouadou e Timguidcht – Trafraoute 50km
As copas das
palmeiras dobram-se com a quantidade de vento que carregou sobre elas durante a
noite. A tenda estava bem camuflada porque estava a 50 mts da estrada. Quando
acordei, não tinha vontade de levantar-me, apesar de não estar confortável (a
esteira estava definitivamente furada). Bebo 2 canecas de café, faço as sandes
de queijo (da vaca que ri), meto o equipamento para ao frio e sigo vale
adentro. As montanhas, talhadas pelo vento, apresentam camadas sucessivas de
rocha, pedras e cascalho que rola encosta abaixo até à estrada.
Tizerkine, Taghaout
e Taloust apresentam um pequeno conjunto de casas que surgem amiúde ao longo do
oásis onde pedalei muito tempo. Foi em Taghaout que fiz um desvio até à
mesquita (onde me indicaram uma pequena loja), para comprar algo que me
ajudasse a comer o pão com queijo. Estas sandes têm sido mais que uma barra
energética e têm fornecido a maior parte da energia que preciso para rolar.
Hoje precisava variar porque acompanhar com água, já começava a “enrolar” na
boca. Remeto-me a algo que raramente bebo, uma coca-cola. Compro mais umas bolachas
e um iogurte para dar proteína.
Tenho que ter
mais cuidado onde poiso a bicicleta neste país. É normal nestas paragens
surgirem logo a seguir muitos espinhos agarrados às rodas. Foi o que me
aconteceu agora e não dei conta. Vou a pedalar, oiço um som da roda da frente e
vejo o líquido maravilhoso branco a sair do tubeless. Pedalo com mais vigor e o
magic seal atua, selando o pneu. Está frio, sopra um vento gelado do alto das
montanhas onde estou. Está na altura de tirar o turbante que estou a usar como
proteção do pescoço e ombros porque nalgumas zonas as queimaduras solares já se
notam (estou a aplicar 2x dia o sun scream FP60).
A descida até às
painted rocks é assombroso. São curvas sucessivas muito apertadas tendo como
enquadramento horizontes completamente castanhos. Por momentos começo a ver ao
longe pedras azuis, rosa, vermelhas…Enormes, gigantes, absorvem o olhar e
sobressaem como diamantes entre outras pedras. Estou a escassos 3kms de
Tafraoute, uma vila importante com inúmeros serviços e é aqui que procuro
alojamento, de preferência com cama incluído. Tive sorte, entrei na
civilização. O quarto tem w.c, espelho, lençóis. Enfim, quase o normal, eu é
que vinha dos lados do deserto.
As crianças do
sul de Marrocos continuam a cumprimentar-me e a estender o braço para que as
nossas mãos se toquem. São miúdos, não têm mais que 10 anos e que, como todas
as crianças, são curiosas, mas não estão a pedir algo em troca. Hoje notei o
toque áspero daquelas pequenas mãos mais habituadas ao trabalho do que à
escola. Quando vejo um rebanho de cabras (na maioria das vezes espalhadas pelas
encostas das montanhas), há sempre na área uma criança que presenteia o
viajante com aquilo que tem de mais autêntico, a sua alegria.
02Abri19
- Trafraoute – Casa Ruínas junto da R10484km
Tive um dia
excelente para pedalar. Sem vento, o sol quase sempre encoberto e várias
aldeias foram surgindo à medida que os quilómetros passavam. Optei por não
seguir o track planeado porque percebi pelo terreno que pouco ou nada ia desfrutar
da imensa vida que se que se aglomerou nos arredores até à vila de Tafraoute.
Pedalei vagarosamente com uma sensação de cansaço constante. Esta sensação só
me largou quando permaneci um pouco numa patisserie, a beber café e a utilizar
o wi-fi. É maravilhoso saber que a tecnologia chegou quase a todo o lado. Tenho
um cartão local com vários GB de dados para utilização, mas novamente, raro é o
café, mesmo no meio do nada, que não tenha wi-fi. Quando acampo num qualquer
espaço de um oásis ou numa ruína ou onde tiver necessidade, a utilização de
dados móveis tem funcionado. Obviamente que tem havido exceções, no entanto,
raro é o sítio onde fiquei sem qualquer tipo de rede de comunicações. Isto é
importante para informar sempre da minha posição, falar com todos aqueles que
deixei em Portugal
Para quem, como
eu, viaja de forma autónoma e solitária, o telemóvel funciona com uma aplicação
de rastreamento e é uma ferramenta de segurança. É comum observar uma patrulha
de polícia e um controlo no meio da estrada, mas quando passo, cumprimentam,
sorriem e desejam-me muita coragem.
Aos 80kms
liberto-me da R104 e entro na linha do track para seguir para Tiznit. Faltam
menos de 30kms e podia até cumpri esta tarefa rapidamente se esta travessia
fosse uma prova e/ou necessitasse ganhar 1 dia.As descidas voltaram a ser o
prato forte do dia. Tive 2 momentos em que facilmente vencia 10kms em poucos
minutos. Deixo-me confundir com o horizonte, um emaranhado de pedras é tudo o
que consigo distinguir no cenário que atravesso. Abastecei novamente com água e
pão. Levo 4lt de água, não pretendo avançar muito mais já que cada quilo extra
num terreno tão exigente é massacrante.
O que resta de
uma antiga habitação em abobe é a única coisa que poderá ocultar a minha tenda
e foi para lá que me dirigi. As poucas paredes que não estão de pé encontram-se
espalhadas pelo chão sob a forma de pedras e mais cascalho. Afastei o que podia
e consegui no amontoado de pedras erguer a minha tenda. Há quem durma sobre uma
cama de pregos, esta noite dormirei sobre as pedras mas sob um céu estrelado
que me ofereceu mais uma oportunidade de viver da forma que eu escolhi. O
espaço ocupado por imensas pedras espalhas pelo chão apertou-me a liberdade
para espraiar a tenda como queria. Desta forma, não ficou totalmente esticada e
o vento brincava com as pontas como bandeiras a esvoaçar.Foi um chinfrim até
adormecer.
03Abri19
Casa Ruínas - Tiznit (hotel des
Touristes)27kms
Tudo passa. Neste
país, a chuva e o vento quase sempre só acontecem durante o período noturno. O
vento ficou, a soprar de sul. Segui para Tiznit, o percurso pouco acidentado
facilitou a viagem e só o vento me deixou marcas por ter sido tão castigado em
menos de 30kms. Olhando de longe, a vila é enorme. São 12h, procuro a gare
routiére da CTM para reservar o bilhete até Casablanca. Tenho planeado viajar
no último autocarro que faz a viagem durante 9h durante a noite e chega à hora
de alvorada a Casablanca.
- Avec le velo, ne pass
possible, diz-me o rececionista da CTM.
Segundo ele, a
essa hora, apesar de não irem muitos passageiros, as bagagens ocupam todo o
espaço do porão do autocarro. Informa-me que posso seguir no das 15h. Começo a
somar horas e percebo que chego ao destino à meia-noite. Sei que não é
tranquilo estar numa grande cidade (que conheço mal), e onde não tenho
alojamento marcado. Trocamos novamente umas palavras e posso então viajar no
autocarro das 09h do dia seguinte.
Depois de visitar
a Source Bleu (fonte que existe na antiga medida há milhares de anos), deambulo
pela vila, os vários nomes com hotéis sucedem-se e continuo a cirandar. No camping
municipal pedem-me 65DH (6.5€), agradeço mas pondero outras opções. Se no site
do Booking encontro quartos mais caros (0.50€) que o camping, então deverá
haver muitos outras surpresas escondidos por aí. Só não estou no sítio certo.
Por indicações de transeuntes, digiro-me para a Place El Mechouar. Entrei
noutra dimensão, se os carros estacionados desaparecessem, era uma praça de Marrocos,
uma montra a céu aberto para os que a visitam.
Num aparente caos
de cores: com pessoas sentadas por todo o lado; tapetes de vários tons
espalhados por vários cantos; sob as arcadas onde se aprecia a joalharia
bérbere desta região, sente-se o burburinho dos artesãos a fazerem o seu
trabalho e dos marroquinos nas bancas a venderam os seus produtos. Numa ala, os
serralheiros, noutra os fogões, sofás, bicicletas, cafés, lojas de roupa, num
instante parece que tudo se combina assemelhando-se a um aparente caos que de
certeza tem uma lógica e uma ordem. Perco-me por estes becos recheados de vida,
com pessoas que tanto podem estar a vender tâmaras, caracoletas, grão ou favas
cozidas com sal em bancadas ambulantes, mas também a servirem copos de água
pela rua para acalmar a sede. Tudo é possível e aos olhos de quem pensa que já
viu muito, é a viver experiências como estas que percebo que afinal, pouco ou
nada vi.
Diante de vários
hotéis, todos a dever muito ao nome, procuro a referência do Booking. Numa
esquina da praça, um edifico bem cuidado e todo pintado de azul com a indicação
de Hotel des Touristes, chama a minha atenção. A porta abre-se e o diálogo
começa imediatamente com um homem coberto com uma túnica para saber onde ficava
o hotel Bellevu. Tudo se negoceia, principalmente nesta altura do ano em que
estão poucos turistas. À primeira nunca percebo o valor que dizem em francês,
por uns instantes, fica no ar um silêncio que os árabes interpretam como “pedi
muito, vou baixar o preço”. Puxam da caneta, da máquina de calcular ou mesmo do
telemóvel e escrevem o valor que fica sempre mais acessível que a primeira
proposta que lançam. Neste caso, o senhor que apresentava um semblante culto,
notou a minha hesitação e lançou o preço de 7€. Só não me oferecia o
pequeno-almoço mas convidou-me a olhar as instalações. Carrego a bicicleta
escadaria acima, e quando me mostrou o quarto com cama de casal, mesa e
armário, tive de dizer. – É de certeza este o meu quarto por este preço? Naquele
instante a bicicleta passou a ser parte da decoração.
Cai mais uma
tromba de água durante as primeiras horas da alvorada. Como dormi debaixo de
teto, evitei que a tenda se encharcasse e consegui estar bem cedo na gare
routiére para embarcar com a bicicleta para Casablanca que está a 9h de
distância.
04Abri19
Viagem autocarro que parou em todo o lado (Agadir-Marrakech)
05Abri19
Tour Casablanca
Após 10h de
autocarro, cheguei a Casablanca a 04Abr, 15dias depois de aqui ter estado para
iniciar a minha travessia pelo sul de Marrocos. A mala de transporte da
bicicleta ficou bem guardada pelo Armhed que me recebeu com um grande abraço.
Resta-me um dia de intervalo antes de embarcar no avião em direção a Portugal.
O tempo é curto para visitar uma cidade grande como Casablanca. Neste momento,
o que mais procuro são os locais antigos e autênticos de qualquer lugar. Estou
alojado no Youht Hostel na antiga Medina e onde se pode encontrar de tudo para
passar umas excelentes horas.
De manhã bem cedo
após o pequeno-almoço, pego na bicicleta sem carga e, literalmente, aventuro-me
pelas ruas hiper movimentadas desta cidade. Há muita construção e reabilitação
por vários quarteirões o que torna o trânsito ainda mais caótico. Para cada
mudança de direção na estrada procuro sempre ficar resguardado lateralmente com
um carro que siga o mesmo trajeto. É entre buzinadelas e espaços muito
apertados que manobro a bicicleta. A atenção nunca é demais e toda a pedalada é
em modo defensivo.
O pó não assenta,
mais uma vez porque o vento está endiabrado e prepara-se para trazer o
temporal. Faço mais um reconhecimento à Casa Port (gare da ONCF) para perceber
onde poderei desmontar em paz a bicicleta para a acondicionar no saco de viagem
e transportá-la no comboio. O fim da linha coincide com um centro comercial e
os seguranças do espaço têm regras muito apertadas contra os velocípedes. Nos
vários m2 que bordejam o edifício, não permitem sequer que se transporte a
“burra” pela mão. Se quero ir comprar o bilhete, tenho de parqueá-la ao lado
das motos porque alguém está lá de guarda. Opto por voltar ao YH e no interior encosto-a
junto das escadas e w.c. Fica bem protegida dos roubos ainda que esteja num
saguão do edifício a céu aberto.
Faço novo percurso a pé até à
estação. Preciso que tudo corra bem amanhã e sem grandes complicações. Deixo
tudo preparado de véspera incluindo a compra dos bilhetes. Chove lá fora e continua
a chover quando permaneço no pequeno café Port a escassos metros do meu
alojamento. Já tinha deambulado pelo souk apenas pelo simples prazer de
contemplar. É fundamental deter-me a escassos centímetros de uma bancada cheia
de azeitonas. Têm cores diferentes, estão retalhadas e misturadas com
condimentos e especiarias que pelo olhar ou paladar, não consigo identificar.
Também vi pernas de vaca com as patas bem hirtas, lado a lado dentro da vitrine,
ou ainda, uma cabra desmanchada já tostada, alinhada em cima da bancada. E
muito mais teria para escrever, considero aliás, que se fosse um Hemingway,
escreveria um livro só a descrever o que vi nestas ruelas.
Voltando atrás no tempo, estava
eu a beber algo para aquecer no café Port e começo logo a socializar e a
cultivar este modo de vida de deixar-me estar a ver todo o tempo passar
enquanto trocamos experiências.
Há 7 dias em
Tissint, era também 6f e tinha aprendido que neste dia os couscous eram
preparados de forma especial e esta era mais uma razão para tentar encontrar um
estabelecimento onde os provar. As gastroenterites e diarreias estão sempre à
porta, nunca se sabe, basta olhar e percebe-se que o nosso organismo – já- não
está habituado a reagir a um ambiente em estado tão natural. Uma discreta
indicação num “banner” de uma loja refere-se a couscous e a minha decisão está
tomada. O prato vem acompanhado com um copo de iogurte natural. Sabe bem a
combinação, no final, o preço também. É surpreendente 20DH (2€). Vou voltar,
não é o preço que me motiva, é mesmo eu gostar da forma com esta gente prepara
os couscous. Aprendi que é uma arte e que pode demorar até 2h o seu preparo (em
minha casa preparo-os em 5min), tem de ser regado, mexido com as mãos, etc.
Passam os minutos
e percebo que irá parar de chover. Assim estreio-me novamente no emaranhado de
becos, procuro, como todos os locais, de evitar a água que desliza velozmente e
as motoretas que andam por todo o lado.
O chamamento
do Muezim ecoa ao sabor dos ventos e por entre as paredes
destes souks para lembrar aos crentes que é chegado o momento de mais uma ida à
mesquita. Há minaretes a cada canto, é a hora da reza. O som propaga-se e
mistura-se com o barulho de motores, buzinadelas ou da agitação do souk. Sob
as arcadas onde centenas de pessoas caminham por corredores onde tudo se pode
encontrar, vê-se em alguns cantos mais recatados dezenas de fiéis prostrados em
direção a Meca. O chamamento contém sempre o mesmo encantamento e delicadeza.
Continuo a
circular, não sou o único, felizmente. O som fica cada vez mais forte. Oiço uma
espécie de homilia que sai dos altifalantes. Encostados aos muros, parados no
meio da rua estão dezenas de pessoas que acompanham o som desta melodia. Nas
bermas, acocorados em redor de uma taça enorme e utilizando as mãos de forma
natural, partilham muito mais que o couscous. Partilham a essência da vida.
Partilhar o que se tem com os que menos podem.
Voltei ao local
do almoço para repetir os saborosos couscous. A especialidade era mesmo só
aquela hora. Recomendaram-me a Harira, sopa rica marroquina a acompanhar com
gomos de limão. Julgo ter como base favas, leva muitos condimentos e ainda massa
e grão. Poderosa..
Como já era
cliente habitual, pegaram novamente na taça da sopa, encheram-na e voltou à
mesa com mais alguns doces típicos para acompanhar. Tudo hospitalidade genuína
porque na hora de pagar, pedi um pão para levar e só paguei um total de 7DH (70
cêntimos).
Leva tempo a
desmanchar a bike e coloca-la dentro do saco de viagem, mas esse tempo precisa
de ser duplicado em Casablanca. Na gare Casa Port, não é permitido bicicletas
nas imediações. Tenho de convencer os seguranças que preciso de estar num
espaço calmo para que não ser importunado pelos homens que nos abordam assim
que se apercebem que somos estrangeiros. Não desgrudam mesmo. É junto à zona de
descargas, perto da entrada para o estacionamento subterrâneo, que tenho o meu
silêncio e a calma necessária para executar as tarefas de acondicionar a
bicicleta.