28 abril 2010

Caminho S.Salvador e Primitivo

“Olha para o mundo cada dia como se fosse a primeira vez”

Em ano Xacobeo, juntei cinco caminhos num só que me levasse a absorver os legados passados e presentes, a emergir em cenários naturais e olhar vestígios monumentais que se acomodam no corpo e alma para os poder viver e recordar num encontro com a eternidade.



Comecei em Chaves, atravessei a Cordilheira Cantábrica até à Catedral de San Salvador em Oviedo para aí cumprir o ditado que diz: Quem vai a Santiago e não passa em San Salvador, visita o criado e deixa o Senhor
Começava aqui o Caminho Primitivo, um itinerário montanhoso considerado uma das rotas mais duras de todas aquelas que se denominam Caminho de Santiago na Península Ibérica.


10Abr10 Chaves-Bragança 88 kms

O Caminho de Santiago não tem um ponto de partida e por isso pode-se começar de qualquer lugar.
Escolhi a zona de Trás-os-Montes porque não conhecia bem a região e é a pedalar que se aprende melhor os contornos que um local tem para oferecer. Quando se tem de subir montanhas e descer pelas suas encostas, nunca mais nos esquecemos de determinados pormenores e detalhes.

Em Chaves tenho três direcções e três distâncias para o mesmo destino. A opção mais curta era seguir o track que obviamente azimutava e cortava pelas cristas das montanhas que avistava. Sabia bem que ia demorar mais tempo do que pela N-103. Não faz mal. “Tornei-me peregrino quando deixei de ter pressa”, pensei.
O Parque Natural de Montesinho é ao mesmo tempo e em doses iguais, a minha barreira e a minha motivação. Não há dureza que supere a beleza de um trajecto com estas cores, cheiros e sons.

.11Abr10 Bragança-Puebla Sanábria 50 kms

Para mim, a TransPortugal trouxe para Rio de Onor a mesma notoriedade que a música de Rui Veloso teve para “Porto Covo”. São destinos opostos e de contrastes, mas eu sempre senti o impulso de passar naquela aldeia colada à fronteira. Diz-se que conhecemos melhor os locais quando os pisamos e em verdade vos digo que, tinha muitas formas – mais fáceis – de chegar a Puebla de Sanábria, no entanto, esta oportunidade eu não a podia perder.
A etapa de hoje é curta, mas é bela; a paisagem tem vida, mas não tem voz; a terra é espanhola, mas pertence-me porque a sei olhar.

A nota dominante deste percurso são os estradões rolantes (quando a gravidade é amiga) e os cumes nevados de Castilha-Leon no horizonte. O mesmo horizonte onde vou estar amanhã.

12Abr10 Puebla Sanábria-Villabrázaro 105 kms

Na presença de outros peregrinos, tudo se partilha. O espaço, a comida, o ressonar.
De manhã, após as palavras de incentivo com buen camiño em direcção a Santiago, todos seguem a seta amarela. Eu trilho o mesmo caminho que eles fizeram ontem.



Esta etapa é “filha” da Via de La Plata e as suas aldeias e vilas devem ser “irmãs” porque têm todas o sobrenome de TERA, o grande rio que fertiliza os seus campos e dá movimento à serenidade das planícies.


Já conhecia as longas extensões de alcatrão que me esperavam e apesar de desejar muitas vezes vento na face e pés nos pedais, qualquer betetista prefere senti-lo pelas costas.

Há muita música e muita bebida nas ruas de Benavente. Só os bares estão abertos, mesmo assim, decido não ficar. O albergue não tem cama e também não é preciso. Sem água para tomar banho e sem comida, como posso ter sucesso na festa?!!!


13Abr10 Villabrázaro-Leon 96 kms
 
(Voltando ao dia anterior em Villabrázaro)


- Aqui não há nada. O bar fecha às 18h00 e eu quero ir para a festa, diz a senhora.

“Se eu a visse lá, vinha-me embora. IRRA, que camafeu”, pensei.

- Helloooo!!! Sou peregrino e tenho fome. Vais festejar mas primeiro fazes o jantar, respondo.

Correu bem…

Continuo a subir os falsos planos da Via de La Plata. Em Hospital de Orbigo, apanho o “Francês” e volto costas ao Apóstolo no caminho coincidente com a Via Láctea e paralelo à N-120.

A meio do dia abandono o pneu suplente em detrimento da reposição do stock de cereais (500g) para o pequeno-almoço.
Agora que a dor começou lentamente a abandonar o meu corpo e a solidão se instalou, sinto-me preparado para enfrentar os desafios que tenho pela frente.

14Abr10 Leon-Pola de Lena 92 kms

Em Leon confluem vários caminhos que conduzem a Santiago. A rota San Salvador consolida-se como zona de passagem da cordilheira Cantábrica até Oviedo. Tirando os longos traçados por alcatrão, é uma rota complicada por natureza.


Por caminhos de montanha duros e pedregosos, prostrei-me perante a etapa rainha de todos os caminhos Jacobeos. Cruzar o puerto de Pajares. Passei da agonia à euforia num minuto. Por um lado, foi horroroso, por outro, foi delicioso e saboroso descer mais de 1000 metros vertiginosamente.

Foi uma escolha acertada corrigir a previsão inicial de dormir em Pajares. Não evitei os 3º C matinais mas era preferível começar o dia a subir



15Abr10 Pola de Lena-Salas 82.4 kms


As Astúrias denunciam-se. Pedalar por aqui é vida; é aspirar o ar que circula entre as pedras rugosas e superfícies polidas dos caminhos das ruas e vielas pelas quais se rasgam após um verde natureza em tons indescritíveis
 

Visito a Catedral de Oviedo, olho as suas relíquias e junto a um aquecedor, seco os sapatos.
Cá fora pára de chover. É uma dádiva que decido aproveitar e comemorar. Entro numa chocolateria, onde, momentos antes, na rua, montei o estendal. Sujo q.b., a saborear o chocolate quente com churros, sou peregrino por fora e turista por dentro.
Fora desta cidade, o caminho Primitivo é deslumbrante. São centenas de quilómetros em trilhos bem definidos e conservados.



Se não precisasse da minha alma como moeda de troca para o inferno de amanhã, entregava-a desde já ao Criador. Estou satisfeito


16Abr10 Salas- Berducelo 84 kms

Várias vezes recordei o que disse Fernando Pessoa “Cheio de Deus não temo o que virá, pois venha o que vier, nada será maior que a minha alma.”
Vontade não tinha. “Vegetei” literalmente pelo caminho que ontem não tinha pernas para subir.
Ansiava por um estimulante. A estrada convidava a descer, falho o track e encontro a loja Santiago. O café é oferta da casa. TOMA LÁ!!!

Já no rumo certo, os bosques frondosos de vegetação densa protegiam-me da chuva, captavam a minha atenção e encheram-me de motivação. Tomei “green energy”.



Depois da bifurcação da Rota dos Hospitais, todos os quilómetros, todas as pedras, todas as gotas de suor, valeram a pena.
Agora era eu que dizia para mais tarde recordar “Ainda não acabei este caminho e já tenho vontade de o repetir

17Abr10 Berducelo-Cádavo Baleira 75 kms

Serpentear dos 1100 mts até aos 200 em menos de 7 kms e contornar a barragem de Gandas de Salime é uma perdição. Single-tracks assim deviam ser proibidos porque viciam e nos fazem continuar a pedalar para ver mais e mais, mesmo quando os vários “puertos” que tenho pela frente, são conquistados de bicicleta pela mão.

A estocada final veio depois de Fonsagrada. As subidas puxavam para trás, a chuva e granizo empurravam-me para as bermas. Resisti até aqui, logo a seguir, só me apetecia chegar.

Tudo isso foram momentos, mais tarde, horas depois, são recordados e entendidos como parte do espírito de qualquer travessia.

E como nem tudo gira em torno da bicicleta, a noite no albergue foi especial. Fui iniciado num ritual galego de tradições celtas, a queimada. Um autêntico “mata-bicho” feito de (muita) aguardente, açúcar, café e limão que nos eleva o espírito e adormece o corpo.

Sem o saber, comecei um vício


18Abr10 Cádavo Baleira-Melide 85 kms

A dificuldade do Caminho Primitivo acabou. Os cumes desapareceram e a chegada e partida da amuralhada cidade de Lugo, faz-se sem complicações.


Os caminhos seguem e cruzam estradas secundárias numa sucessão de paisagens e pisos muito semelhantes. Depois de tudo o que vi, podia dizer que esta é uma etapa algo aborrecida se não fosse recorrer ao meu vício. Beber a queimada de Lugo no único bar aberto ao Domingo após muitos quilómetros sem abastecer de água e comida.

Pressa de chegar?! Só tive um dia. Agora, vou rolar…O piso lamacento e água da Galiza não deixaram.

19Abr10 Melide - Santiago Compostela 54 kms


Chegar a Santiago é um passo de gigante. A bicicleta ganha vida própria e desliza como nunca. Multiplicam-se e misturam-se pessoas, centros urbanos, carros e consumismo. É a massificação do Caminho Francês; é a perda da mística; é o voltar à realidade.



Epílogo

Chegou a hora de – não - parar de pedalar; de olhar para o baú das ideias, de escutar a voz do coração, de agir e partir porque a Transpirenaica vem a seguir







08 abril 2010

A Caminho do Jacobeo 2010


Para mim, a bicicleta é o melhor modo de nos aproximarmos das pessoas, da natureza, e de nós mesmos. Por isso amanhã, "sai" uma autonomia.