20 janeiro 2021

TransNevada BikePacking 20



Não faz sentido ir mais longe…

 Até que uma voz, tão má como a consciência, soou mudanças intermináveis

Num sussurro eterno, dia e noite, repetiu – então:

“Existe algo escondido. Vai e encontra-o. Vai e olha atrás das montanhas.

Algo perdido atrás das montanhas. Perdido e à tua espera. Vai!”

 

Kipling “The Explorer”

 

Dia 11 Set – Etapa 1 Dílar- GuejarSierra -  Camping CortijoBalderas (60kms, 2020mts)






Vou começar pelo fim. Pelo choque quando vi os portões do camping fechados. Olho pelas grades e tudo o que vejo são bostas de vaca e a azul, o símbolo de uma torneira. O que eu realmente preciso é de água para conseguir sair deste ponto. Talvez hajaa caminho da próxima civilização em Tócon a 20kms, cerca de 2h30 de distância. Energia para continuar? Tinha que a encontrar, no entanto, sem água, nem cozinho nem me hidrato.Salto a vedação, abro a torneira e nada. Não dá para evitar tanta bosta de vaca espanhola espalhada pelo pátio da antiga esplanada. Está por todo o lado. Avanço atento a todos os detalhes. No buraco de um bloco de cimento vejo a ponta de um tubo. É mais um. Do lado oposto, uma torneira. Encontrei o que procurava.Faço uma vistoria rápida ao que está dentro de portas e percebo que os beliches com colchões têm o poder de me convidar para ficar.




Como cheguei até aqui? A pedalar, devagar, porque as subidas são íngremes. Depois da viagem desgastante desde Lisboa no dia anterior, resolvi dormir num hotel em Otura a cerca de 6kms de Dílar, local onde começa a aventura.Não foi o hotel mais bonito que escolhi uma vez que nesta vila existe um outro alojamento com vista sobre as montanhas. A vantagem do primeiro foi estar situado junto a uma via rápida e ter um parque de estacionamento bastante espaçoso. Desta forma, o carro pode ficar vários dias estacionado sem qualquer problema (espero eu).



Logo após a povoação começa o calvário. A percentagem de declive das subidas em terra batida não permite uma pedalada constante. Um pó branco vai cobrindo todo o corpo, a bicicleta e o vidro do gps. Os cenários vão mudando, há muito arvoredo e em determinado momento, os caminhos, já acima dos 1400 metros de altitude, passam a ser estradas de montanha. São largos, menos acentuados e normalmente começa-se a ver outras bicicletas, mesmo que venham em sentido contrário.Já rolo no Parque Natural há vários dias. Junto a uma estrada alcatroada páro para abastecer numa área com vários restaurantes e infraestruturas de apoio às atividades de Inverno. Ao observar uma mancha branca de casas ao fundo do vale, fiquei contente por perceber que era GüejarSierra e que até lá seria sempre a descer.Colado ao rio Maitena, esta aldeia situada a mais de 1000 metros de altitude, mantém o seu ar serrano. Na bifurcação do caminhoque levava para a povoação, optei por seguir para o camping municipal Balderasevitando assim que no dia seguinte repetisse o trajeto até este ponto (ainda eram 6 km a subir). A placa indicava o camping a 5kms. Ao longo da estrada, postes de madeira com uma tenda esculpida indicavam a distância que faltava. Até aquele momento, só havia um problema. Era sempre a subir. Outra vez. Cheguei ao parque, não paguei, e não tive qualquer problema.

Dia 12 Set – Etapa 2 Camping CortijoBalderas – Cogollos de Guadiz- Marquês de Marquesado – La Calahorra (73kms1063mts)

A estrada mantém-se nos 10% de inclinação no mínimo. No topo da montanha começo a pedalar para oeste. Os cenários mudam, o verde surge com frequência e dá gosto entrar pelos bosques junto a Tócon. Há um café, é psicológico, mas sabe bem comer algo diferente pois já percebi que uma simples “tostada com presunto” pode ser raro encontrar por aqui. Vou precavido com algumas massas que me permitem situações de emergência ou dificuldade em encontrar algo civilizado pela serra.




Os caminhos de pó branco encandeiam quando o sol está alto. Volta a agarrar-se a tudo e transporto-o comigo bem colado à pele. Finalmente consigo pedalar de forma constante. Partilho parte da estrada com ciclistas. A sinalização de trânsito alerta os condutores que esta zona, pela sua beleza, é frequentada por utilizadores de bicicleta.

O cheiro de uma “panadaria” faz com que aperte os travões, faça meia-volta e tente encontrar a porta de entrada. Estou em La Peza. Deste “pueblo”, passo Lugros e chego a Cogollos de Guadix a meio da tarde. Tinha planeado ficar acampado algures num pedaço de terra da Andaluzia. Olho o gps, a linha do caminho para o dia seguinte leva-me a um sobe e desce constante a meia encosta na Sierra Nevada. Estou aos 1300 metros de altitude, percebo que se seguir o curso do rio, chego a La Calahorra ainda hoje.Os tons barrentos do Castelo de La Calahorra vêm-se de bem longe. Deambulo pelas ruelas em busca do centro da praça onde avisto a torre da Igreja. Desta posição inicio o reconhecimento para decidir onde ficar e comer. Há a opção de alojamento e alimentação no hotel Labella, tal como estava escrito no meu planeamento. Está vento, está sol, tenho uma tenda nova, porque não devo ir acampar?




Falta 1h para abrir o supermercado. Do outro lado da rua, na esplanada do hotel estudo as próximas etapas. Serão talvez as mais isoladas acrescentando que amanhã será domingo e dificilmente encontrarei algo aberto.

Dia 13 Set – Etapa 3 La Calahorra _Wild Camping na área recreativa de Paredes, 10kms depois de Alba (69 kms 1022mts)

A etapa de hoje terminou tal como começou. A subir. Deixar a segurança da água e da comida em Aldeire tornou-se mais um desafio a vencer. O cimento rasgado por sulcos cobre todo o troço que me leva a afastar do povoado. A inclinação, combinada com o peso da bicicleta, obriga a apear imensas vezes. Preciso controlar a respiração.




A estrada nacional que leva ao Puerto de La Raguae que corta a serra pelo meio, durou pouco. Sei que daqui a 2/3 dias já estarei do outro lado, assim que contornar este gigantesco maciço rochoso. Os caminhos são agora de terra e pedra escura. São caminhos de alta montanha onde consigo pedalar de pé e manter uma cadência constante. Movo-me, na melhor das hipóteses, a 8km/h. Os 2 bidons de 750 ml estão quase no fim (trazer mais uma garrafa cheia como precaução, significa mais 1kg e mais dispêndio de energia). Vou sobre o sendeiro Sulayr que me leva, tanto sobre cumes, como por meia encosta. Tenho uma vista panorâmica privilegiada sobre a mancha verde que cobre toda a área que consigo observar.Numa dobra do terreno, junto a uma linha de água, encontro uma fonte. Abasteço e deixo-me andar pelos quase 1900 metros de altitude.Tenho uma longa jornada e uma dura etapa até ao meu destino previsto que é Abrucena. O seu casario de casas brancas, quase encavalitadas e bem encostadas à montanha, é algo que merece ser recordado.



Em Alba, uma placa a indicar área recreativa suscita a minha atenção. Faltam 10km que vão ser duros de roer. São sempre a subir. Vou com o mínimo de água, lá em cima, numa área de merendas, não deve faltar, pensei. Pensei mal. Fiquei contente ao avistar o local, mas após várias voltas de reconhecimento, não encontrei qualquer líquido. Vejo vários carros estacionados pelo recinto, as instalações sanitárias estão fechadas, o acesso às churrasqueiras vedado e várias mesas vazias à exceção da mais afastada.Montado na bicicleta, desço a ladeira e aproximo-me dos 3 indivíduos que têm a mesa farta. Pergunto se sabem onde posso encontrar água? Segundo eles, não há. Um dos homens, percebendo que eu não era espanhol, prontamente me disse que eram romenos, pegou numa garrafa de água de 1,5lt e deu-ma. Ganhei o dia.





Dia 14 Set – Etapa 4Wild Camping (WC)-Ohanes-Láujar do Andarax

-Bayarcal(WC  perto de área recreativa Universal TALAMA. Slide) (53kms , 980 mts)

Hoje de manhã parecia que nada cabia nos sacos de origem. Que falta de jeito logo ao acordar. Nem a tenda nem a colchonete pareciam caber nos locais que lhes eram destinados. Estava tudo tão mal enrolado. Quem sabe se, passar a noite com tão pouca água me tenha afetado os neurónios. Ainda por cima, a meio da noite tenho sempre sede e ataquei o bidon com água destinada para o trajeto até à povoação que distava 15kms. Felizmente subi pouco. Ohanes está bem no fundo de longas descidas onde cheguei a rolar a 60km/h.À minha frente uma cortina branca de casas tapa a encosta da serra. À entrada, de um muro de pedras cobertas de musgo, brota água da montanha. Pura, fresca e cristalina. Abastecei e num gesto de refrescar o corpo, aproveitei para me lavar também.




Deixo a vila pelo extremo oposto e mantenho-me a pedalar a pouco mais de 1000 metros de altitude. Vou ligeiramente afastado do percurso de gps que se situa numa cota bem mais acima. Vendo esta povoação percebo que, se pedalar sempre “perto das nuvens” e em isolamento total, perco imenso da criação do homem que tão bem se adaptou a estas condições inóspitas da montanha.Parei em Láujar do Andarax. Toda esta região é um chamariz turístico com grandes potencialidades gastronómicas. Para mim, basta um café ou uma cerveja num café local enquanto escrevo e carrego gadgets. Poupo-me para a passagem do Puerto de La Ragua (2000 mts) pois sei que terei que acampar bem mais alto para no outro dia chegar a Trevélez.






Perto das 15h, chego a Bayarcal. Os poucos estabelecimentos comerciais que vi estavam fechados. Até o restaurante ao lado da igreja e a padaria encerram à 2ªf.As fontes de água abundam. No centro da aldeia, ao perguntar a um transeunte onde podia comer algo, indicou-me que, voltando para trás, alguns metros mais abaixo e bem às portas da terra, eu comeria bem no restaurante Nuno.Por 10€, sacio-me com o “menu deldia”  e quem sabe já nem preciso jantar. Encho todas as garrafas disponíveis e vagarosamente vou ultrapassando as curvas da estrada sempre atento a um pequeno espaço onde possa colocar a tenda. Só vejo pedra, cardos e tojo seco sobre as ravinas que me cercam. Vou muito carregado, não pretendo avançar demasiado e por essa razão o sítio que escolho precisa de algum tempo de preparação do terreno. Dificilmente alguém virá pisar este espaço um pouco afastado do “Pueblo mais alto de Almeria”. As ovelhas e cabras não contam… Uma hora depois, passa um rebanho a trepar ladeiras e rochas.


Dia 15 Set –  Etapa 5 Bayarcal -Laroles_Maitrena-Juviles-Trevélez (73kms , 1300 mts)

As gotas de chuva batem com força no teto da tenda durante alguns períodos da noite. Ao acordar, quando arrumo a tenda na bicicleta, vejo claramente a terra seca e o formato da tenda no emaranhado de pedras e tojo que enche esta clareira. Continuo ladeira acima em direção ao Puerto de La Ragua. Alguns quilómetros abaixo do cume abandonei o alcatrão para depois cruzar toda a montanha que vejo mesmo na minha frente pisando umpiso duro com terra rochosa e negra. Foi uma tortura chegar a Juviles. Uma estrada secundária leva-me até ao “pueblo mais alto de Espanha”, Trevélez. Esta aldeia está dividida em três bairros (Alto, Médio e Baixo), com uma diferença de nível de até 200 metros, as casas mais elevadas do Bairro Alto alcançam os 1.650 metros de altitude.






Depois de passar a praça central e as dezenas de lojas de presuntos, sei que tenho que chegar ao último nível para atingir o camping. A temperatura é outra por aqui e nada tem a ver com o calor que se sente quando se rola a cerca dos 1000 metros de altitude.




Dia 16 Set – Etapa 6 Trevélez – Capileira-Pampaneira- Casa montanha (pastor) N 36 56.999 W 003 27.588 58kms 1400mts



Cansado e satisfeito é o que me apraz escrever nesta altura colado à casa de xisto abandonada no meio da Sierra Nevada. A estrada levou-me apressadamente de Trevélez à povoação da Capileira. Vinha de cima, velozmente enquanto sentia que aquela malha de casas brancas estava a chegar cada vez mais perto. As varandas das ruas estão coloridas com mantas de todos os tamanhos e cores. Há cestas e muitos outros artesanatos que a gente hábil da montanha elabora com tamanha arte.Faço do meu tempo, o tempo para beber uma cerveja e “picar” algo. Alguns quilómetros mais abaixo, outro pueblo mágico de Espanha onde cheguei num sopro. Parecia que descia num super elevador para um nível inferior. Em Pampaneira demorei-me um pouco mais. Aproveitei para almoçar e reforçar o saco de mantimentos que nesta altura tem mais comida do que quando iniciei o périplo. Após 40kms percorridos começa a pista florestal. Os restantes 18, reservam muita história para contar.




A subir, sentado no selim da bicicleta, mesmo a 5km/h, consegue-se chegar bem alto. À minha frente, um piso duro, um calor intenso pelas costas e dezenas de moscas faziam-me uma espécie de escolta até encontrar uma fonte e tirar o excesso de suor que escorria por todo o corpo.Na primeira casa florestal que passo, vejo uma casa outrora bela, escrupulosamente bem situada junto de uma densa arborização ao abandono. Em vão tento encontrar água. Levo quase 3h de subida, resta-me 0,5lt água e a esperança de a ver escorrer por entre as rochas. As paragens ao longo deste trajeto são frequentes. Numa delas, pego no telefone, vejo que tenho cobertura e dados móveis e comento que, aquela altitude a tecnologia vence a água.

Estou a seguir uma placa a indicar área recreativa que dista 6kms quando vejo um jeep a descer. Faço sinal e pergunto se existe alguma fonte neste local de lazer.



- “Queres água? – Diz o condutor.

- Sim.

Recebo em mão uma garrafa do Luso e comento que é água de Portugal.

- Então também és português? A fonte fica longe.

Bem!? Fica longe e eu não a encontrei. É curioso porque quando procurava água na casa florestal, tentava ouvir o som dela a escorrer, e por vezes, o vento a bater nas folhas quase me iludia. Aqui não. Ouvia água em bruta a desceraceleradamente numa calha de irrigação. A fonte? Nada. Meti as garrafas de molho e transportei o máximo que podia na bicicleta.

Nova casa florestal em Cañar e também aqui não tive sucesso. Ao ver alguém espreitar, pergunto. Há por aqui alguma fonte?

-Pienso que non

- É que acabei de encher as garrafas num canal de irrigação.

- Non tienes problemas. És água corriente.

Vou sobre uma grande rota e avisto uma placa a alertar que o caminho é privado, para não o seguir. E agora?! Aos 1700 metros de altitude não dá para ir dar a volta. Mantenho-me no caminho a descer. Os cenários, as cores castanhas fortes da montanha ao meu lado contrastam com tudo o que vi até agora na Sierra Nevada.Vejo bem longe 2 jeeps estacionados junto a habitações e uma casa de xisto a poucos metros de mim. Tenciono montar a tenda pois a casa tem grades nas janelas e um cadeado na porta. Com um olhar mais atento por um vidro partido, vejo imensa luz natural no interior e percebo que no tardoz da habitação só existe uma meia porta para o quintal. Assim sendo, fiz-me convidado para passar a noite em solo duro.





Dia 17 Set – Etapa 7 Casa montanha (pastor)- Nigüelas-Dílar (Otura hotel boadbil)  41kms 860mts

Todo o vale que se espraia para lá desta casa de pedra está coberto de nuvens. O céu cinzento, carregado, ameaça manter a chuva que caiu durante a noite. Sinto o ambiente mais fresco, o cheiro a terra molhada e a outras ervas que não sei identificar é intenso.





Volto ao ponto do caminho que tinha abandonado no dia anterior. O jeep branco e o outro carro mantinham-se no mesmo sítio enquanto me fui aproximando. Transponho nova corrente de ferro para passar 2 casas de montanha com vista para uma cascata, onde, por um estreito carreiro, passei bem colado a ela.A ladainha de andar a pé continuou até ao abrigo de montanha situado alguns metros acima. É enorme, tem um enquadramento paisagístico digno de um hotel 5 estrelas. Já a meia encosta, enquanto contornava a montanha, olhava para baixo e via a casa do abrigo do pastore todo o caminho que tinha feito até ali chegar.


Sem precisar, fui contanto as fontes que amiúde e de forma abundante iam surgindo. No minino contei 5 até Nigüelas. Bem alto, via toda a povoação e senti-me deslumbrado com a forma e as cores da montanha que abraçavam esta terra.Na praça central, onde tudo flui, onde 2 bicas brotavam água, bebi e comi.


É ao longo do rio Torrente que o caminho volta a entrar na montanha. Em sucessivos movimentos de zigue-zague, volto ao ataque para mais um embate duro pois esta Serra consegue manter em alta todas as expectativas até ao final. Foi sem dúvida o troço mais bonito de toda esta travessia.  Desço para Dílar onde, há 6 dias atrás deixei o carro no parque de estacionamento do hotel.

Há muito que está na hora do check-in, no entanto, é chegada a hora da descompressão. De fazer uma transição suave entre o modo como vivi durante 7 dias e hoje. Vou celebrar. Vou beber um Alhambra mesmo ao lado da via rápida.

Epílogo


Menos com menos dá mais.

Em matemática, menos com menos dá mais. Durante este périplo levantei-me ao amanhecer rodeado de natureza, quando me deitei, não me afastei da essência. Durante este período de tempo, fiz tudo aquilo que mais gostava. Pedalei e estive menos tempo a…

Dormi todas as noites sob o mesmo teto. Em todas essas noites, coloquei a tenda em sítios diferentes, todos eles à distância de várias pedaladas.

Sou feliz assim. Sei que moro num apartamento na maioria dos meus dias, mas não me sinto menos feliz por isso, apenas gosto de subir à montanha porque ela está ali, à minha frente, e preciso de chegar ao outro lado.

19 janeiro 2021

Pequena Rota pelas Praias Fluviais da zona Centro

 





Cada um de nós é os sonhos a que se amarra”

Manuel João Ramos in Traços de Viagem

 Viagem em 2 rodas pelas praias fluviais outrora desconhecidas de turistas. Tudo é válido. Qualquer razão serve para carregar a bicicleta e pedalar.

 No livro Traços de Viagem que transportei comigo nestes dias, surge algures, “Que sentido fará deixar para outros algum traço das nossas viagens? Talvez apenas aquele sentido que se expressa nas palavras de Salomão: o mundo gasta-se, erode-se, destrói-se e altera-se, mas, nos traços que nele deixamos, ficam preservados – como num molde invisível – os múltiplos sulcos que foram feitos antes dos nossos”.

Escondidas bem no coração de Portugal, as praias fluviais não são um segredo para os amantes da natureza. A frescura das suas águas e a tranquilidade que oferecem longe de grandes amontoados de pessoas, influenciaram a minha decisão de delinear um trajeto exequível para a bicicleta, onde em qualquer altura do dia pudesse dar um mergulho refrescante.

No total, não percorri 300kms. O número de dias necessários para esta odisseia pode variar de acordo com a duração que se quer estar em cada uma das 14 praias fluviais. Este roteiro é uma excelente opção em tempo de pandemia.

D1 Tomar-Agroal-Penedo Furado - 21julho



75kms – 1278 mts

Acordei de madrugada, o sol ainda não tinha nascido. Precisava chegar à linha de Cascais para apanhar o primeiro comboio em direção ao Cais do Sodré.

Os primeiros raios de luz despontam quando cruzo a “primeira praia fluvial da Ribeira das Naus”. Estou tão estupefacto a escrever como quando vi uma referência a este pedaço de água no site com uma lista de mais de 250 praias fluviais. É um facto que a lista não está atualizada, mas, alguns dos locais que constam, devem merecer um olhar critico.



Faltam 15 minutos para as 07h00. O regional em direção a Tomar prepara-se para partir. Já em deslocamento, sinto-me em viagem. Sinto a rutura com a normalidade pois sei que estou a avançar no tempo. É este o tempo que vou guardar na memória, que vai alimentar os meus dias ajudando-me a suportar as rotinas.

Para chegar ao Agroal a pedalar tenho 3 opções. O percurso que me leva rio acima pela margem direita do Nabão segundo um é bom para ser feito a pé, mas tem algumas dúvidas se é ciclável. Dias antes questiono um amigo de Tomar que me faculta o telefone de um outro amigo que conhece a região. Faltam mais de 10 minutos para chegar ao final da linha e quando ligo ao Fernando, após um breve instante de conversa, decide vir comigo e ser o meu guia. Arquiteto de formação, este ciclista abriu muitos dos trilhos junto das margens e é da sua autoria as pontes de madeira para ligar alguns dos pontos mais complicados.

A beleza do trajeto é indiscutível. As antigas fábricas de papel do Prado e de Porto Cavaleiros começam a ficar para trás. O açude da Real Fábrica de Fiação e o açude do Sobreirinho são alguns dos lugares imperdíveis desta odisseia.




Despeço-me do Fernando em Vale Colmeias quando começo a descer por um caminho pejado de pedra até ao Agroal. Não equipei a bicicleta com pneus para todo o terreno nem tampouco optei por pneus de gravel. Mantive os meus citadinos que em subidas de pedra solta perdem alguma tração.



A praia fluvial está confinada dentro de cercas. O espaço comporta um máximo de 200 pessoas, e o fluxo é direcionado por setas pintadas no solo. É hora de almoço, tenho direito a uma pulseira rosa que me concede acesso às águas frias da nascente do Agroal. Infelizmente a bicicleta não pode passar e é esta impossibilidade que me obriga a redefinir o resto da etapa. Necessito passar para a outra margem e o único local disponível está fechado.


O gps estima que preciso voltar para trás e retomar a direção por Tomar antes de chegar ao Penedo Furado. Olho bem para o pequeno écran e procuro alguma povoação que esteja do outro lado da colina onde me encontro. Navego por azimute para Calvinos. Os caminhos de terra alternam com pequenos troços de alcatrão. São estradas municipais que fazem a ligação entre aldeias e são elas que me permitem avançar até retomar o track original depois do Agroal.

Faz calor, muito calor. A água do bidon escalda-me a garganta. Assim que avisto um café, não resisto a uma cerveja bem gelada. Posso ficar ligeiramente zonzo, mas sei que ficarei hidratado.

Cruzo a ponte de Ferreira do Zêzere e entro em Vila de Rei. Os desníveis mantêm-se. Na zona de lazer da cidade aproveito para descansar enquanto mato o apetite dando sumiço a 4 carcaças e 2 queijos alentejanos. Do centro de Portugal sai-se velozmente ladeira abaixo em curvas e contracurvas até outro extraordinário spot chamado Penedo Furado.





São quase 21h00. O bar de apoio à praia fechou. Nesta altura do dia já não se ouvem vozes por aqui. O correr das águas e o canto dos pássaros conquistam este espaço. Existem churrasqueiras com bancadas e mesas de apoio bem como casas de banho. Apesar se estar entrincheirado no fundo do vale e de ser um lugar amplo, já sei onde colocar o hammock (cama de rede) para poder passar a noite.

 D2 Praia Fluvial Penedo Furado- Praia Fluvial Troviscal - 22julho

61kms – 1198 mts

Antes do som da trovoada senti constantemente o desconforto causado pelas melgas. Dentro do hammock tenho muitas partes do corpo expostas que se tornam terreno fértil para alimentar estes bichos noturnos. Tenho a sensação que dormi por intervalos, sei que contei com 3 cargas de água e o som profundo da trovoada a ecoar pelo desfiladeiro.

Acordei com os trabalhadores da Junta. Estão a montar os postes de iluminação para cobrirem toda a área da praia fluvial. Usufrui de parte da luz elétrica para preparar o jantar, enquanto permaneço sentado numa das mesas que dão apoio à churrasqueira atrás de mim.

Para sair de qualquer praia fluvial é sempre preciso subir. Por um caminho praticamente paralelo ao do dia anterior, sigo viagem em direção à praia de Bostelim.


Entro em aldeias pelas suas ruas estreitas e desertas, na minha frente, o aspeto das ruínas mostra o sinal de isolamento que se vive por estes lados. É comum não ver ninguém na rua e raramente encontrar um café. Vou em autonomia, tenho comida e alguns extras como capuchino, mas por vezes sabe bem optar por algo diferente e também comungar com quem ali vive. Desvio do trilho para a aldeia da Boa Farinha na esperança de encontrar algo. Não tenho sorte.

Em meu redor, uma mancha negra. Os jovens pinheiros não resistiram a um incêndio recente. É com esta envolvente que chego a Bostelim. A infraestrutura continua em obras e por isso demoro pouco até voltar a sentar-me no selim e pedalar estrada acima. Em S.João do Peso tenho um encontro com a carrinha do padeiro. Compro pão com chouriço, peço uma cerveja média no café junto da igreja e aproveito para carregar o telemóvel (ainda não decidi usar a parafernália que alimentam estes aparelhos eletrónicos).

Aproveito a frescura do ambiente para sair perto das 13h. Venho sempre de uma cota mais elevada antes de chegar a qualquer praia fluvial. Avisto a ponte romana dos 3 concelhos, sob ela, o curso de água leva-me até Pego das Cancelas. Sossegado, tranquilo, com água quente, aqui existe muita sombra, churrasqueiras e bar decorado com bom gosto, onde não falam opções muito saudáveis como aquela que bebi. Um pagaio (café com leite de aveia e gelo), algo com uma textura semelhante ao Irish Coffee.



As manchas de pinheiros fazem-me companhia sempre até à Sertã. O piso ajuda a rolar. Um outro ciclista do grupo Portugal Bikepacking está atento à minha jornada e oferece-me uma cerveja na sai cidade. Visito a praia fluvial da Ribeira Grande e meto conversa com um jovem que se desloca para as piscinas que são adjacentes à praia. O Miguel, o rapaz da bicicleta, faz questão de levar-me ao ponto de encontro com o Luís Cabaço junto ao Minipreço bem em frente da sua loja de ferragens.



É intuitivo manter uma conversa amigável quando temos gostos em comum. A tarde já vai longa quando apanho a antiga N238 em direção a Oleiros. Algures, bem escondida, permanece a praia do Troviscal. O bar de apoio está fechado, não há ninguém por aqui. Volto novamente a ter o privilégio de trazer comigo toda a tranquilidade e beleza de um espaço que poucos devem conhecer.



D3 Praia Fluvial Troviscal - Praia Fluvial Carvoeiro 23julho



90kms – 1800 mts

Tive que adaptar bem a montagem do hammock dentro de uma pequena casa de chapa metálica. No pano, as instruções são claras. Recomendam 3 metros de montagem, mas nem colocando o pano na diagonal da estrutura eu conseguia tal distância. A curvatura do tecido quase tocava no solo. Por existir um vazio de 30 cm acima do solo sem chapa, senti o vento da noite e foi necessário vestir mais uma camada de roupa. Deitado de barriga para o ar, sem nada na minha frente, posso ver o céu estrelado enquanto a minha “cama balança” de um lado para o outro.





O tempo passou devagar e o sol ainda não atravessou o cume da montana enquanto tomo a aveia e tomo um capuchino.

Momento a momento, pedalada a pedalada, vou sendo surpreendido pelo caminho a meia encosta que sai do Troviscal. Acompanho o curso do rio e é no porto do Troviscal que o cruzo para, logo de seguida, trilhar uma longa extensão de paralelos de basalto até à aldeia do Mosteiro. É nesta povoação que o caminho se junta à N238 e rapidamente chego a Oleiros para mergulhar na praia fluvial de Açude Pinto. De salientar que é considerada “praia de ouro” da QUERCUS. Com parque de campismo, várias infraestruras de apoio, um pano de água gigante e não está ninguém. Sou apenas eu a fazer ondas na piscina.

Desta cidade foi sempre a subir até ao parque eólico Cabeço da Rainha. É sobre este cume que começo a mudar o sentido da marcha e a dirigir-me para oeste. A gravilha solta torna a trajetória da bicicleta muito incerta. Do topo da montanha, junto ao marco geodésico com a cota acima dos 1000 metros, foi uma descida monumental até à praia fluvial do Malhadal. O azul dos insufláveis que delimitam a piscina, vê-se bem longe. Todo o espaço em redor é cuidado com as hortências debaixo das pérgulas a adornar os caminhos que nos levam cada vez para mais perto daquilo que vim à procura. Pouca gente.





O isolamento mantém-se. Nas aldeias que surgem não encontro um café onde possa comer algo. Chego à praia da Aldeia Ruiva e deparo-me com um ambiente de máquinas, trabalhadores e muita poeira. Tudo está em obras. Sem outra opção, retorno alguns quilómetros mais acima e continuo para Cardigos. O calor sufoca, o ar que sinto bater no corpo e rosto, vem quente. Sigo um estradão, sempre à sombra de árvores, até à entrada da praia fluvial. O barulho é notório. Há muita gente, a piscina em azul turquesa contrasta com tudo o que a rodeia. Não importa de onde se olhe.

Faço nesta piscina o mesmo que em todas as outras. Sigo o ritual do mergulho. Tomo a temperatura da água e refresco o corpo enquanto preparo a mente para uma nova andança. Passa das 16h00, uma tosta e uma imperial torna-se o almoço de hoje.




A praia do Carvoeiro está a 23kms. A bicicleta continua a ser o meio de transporte até ao novo ponto de água. Foi a etapa mais longa e cansativa. Quando ainda me faltava uma dezena de quilómetros, já não sigo a orientação do gps. Fiquei sem pilhas, por desleixo, não tive vontade de desfazer o saco, apanhar outras pilhas, e dar nova vida ao aparelho. Era praticamente sempre asfalto e seria fácil seguir as placas. Quando páro no fim da aldeia do Carvoeiro e pergunto a um habitante se era necessário descer mais, ele aponta na direção oposta e diz-me que falhei uma placa no topo da aldeia. À minha esquerda existe um café, nada como beber umas cervejas, relaxar, revitalizar o gps e adiar o inevitável.

Largos minutos depois, faço-me à subida. Já saiu muita gente, os poucos que se mantém no relvado da praia fluvial aproveitam o final da tarde quente e deixam-se estar. São quase 21hoo, não tenho pressa, bebi bem e exagerei no que comi aquando da minha paragem no supermercado de Cardigos.

Tenho quase a certeza que serei o único a olhar o céu deitado sobre um saco de rede que será estendido, quem sabe, entre 2 chapéus de palha que estão na areia ou debaixo do enorme telheiro que protege as mesas de refeição.





D4 Praia Fluvial Carvoeiro- Praia Fluvial Alamal- 24julho



44kms -

Não sei se ver o raiar do sol cura uma ressaca, no entanto, sei que ajuda muito a recuperar de uma noite horrível e mal dormida. Alguns quilómetros mais abaixo no fim da aldeia, volto a entrar no café do dia anterior. Não foi para beber cerveja, tive que reforçar a dose de cafeína. Sem rede móvel, mas com o wi-fi do estabelecimento, publico no FB que voltei ao caminho e alerto todos os que amo, pois, mesmo estando habituados a que esteja em locais sem cobertura, aviso sempre que posso. As estradas municipais ajudam imenso a encurtar distâncias. Já num estradão, recheado de adjetivos, chego à cascata do Pego da Rainha. Não sou o único, um cão aproxima-se de mim junto do rio. Avanço prudentemente e vejo um casal na sua caravana. Entabulamos conversa, ficam fãs do périplo que fiz até então, fotografam a minha check-list de praias e decidem abortar o plano inicial de descerem até Vila Velha de Rodão.




Mergulho vestido com roupa de licra. São 10h00 da manhã, mas o calor não esperou para chegar. Parece que as pilhas de reserva já não vinham com a carga completa. O gps queixa-se. Vou sobre terra batida, ao longe, numa determinada direção, está Belver. O aparelho, em modo de poupança de energia, desliga o écran passados alguns segundos. Passo sob a A23 mas ao confirmar se estou no sitio certo, vejo que estou desfasado centenas de metros. Nova passagem sob o tabuleiro da via rápida, desta vez o caminho não coincidia com o track. Sem confiança, avanço largos quilómetros até entroncar no alcatrão que me leva a ver o castelo de Belver. Cruzo o Tejo e ao longo do passadiço do Alamal chego à areia branca da praia onde volto a mergulhar.




Epílogo:

Será que chegar a um lugar de sonho está apenas ao alcance de alguns, ou será assim tão árduo? Na minha opinião, está perto. Não precisamos de nenhum passaporte, de contratar um guia ou agência de viagens. E o mais maravilhoso é que praticamente não tem custo e é em Portugal. Não existe um palmo de terra neste país que não mereça ser descoberto a pedalar.

Os interesses são pessoais e os gostos não se discutem. Eu adoro estar num sitio bonito bem colado a algo que me centra com a natureza tal como o contato com a água pura e os cheiros da terra. É como se algo divino me tocasse.