Não faz sentido ir mais longe…
Num sussurro eterno, dia e noite, repetiu – então:
“Existe algo escondido. Vai e
encontra-o. Vai e olha atrás das montanhas.
Algo perdido atrás das montanhas.
Perdido e à tua espera. Vai!”
Kipling “The Explorer”
Dia 11 Set – Etapa 1 Dílar- GuejarSierra - Camping CortijoBalderas (60kms, 2020mts)
Vou começar
pelo fim. Pelo choque quando vi os portões do camping fechados. Olho pelas
grades e tudo o que vejo são bostas de vaca e a azul, o símbolo de uma
torneira. O que eu realmente preciso é de água para conseguir sair deste ponto.
Talvez hajaa caminho da próxima civilização em Tócon a 20kms, cerca de 2h30 de distância.
Energia para continuar? Tinha que a encontrar, no entanto, sem água, nem cozinho
nem me hidrato.Salto a vedação, abro a torneira e nada. Não dá para evitar
tanta bosta de vaca espanhola espalhada pelo pátio da antiga esplanada. Está
por todo o lado. Avanço atento a todos os detalhes. No buraco de um bloco de
cimento vejo a ponta de um tubo. É mais um. Do lado oposto, uma torneira. Encontrei
o que procurava.Faço uma vistoria rápida ao que está dentro de portas e percebo
que os beliches com colchões têm o poder de me convidar para ficar.
Dia 12 Set – Etapa 2 Camping CortijoBalderas –
Cogollos de Guadiz- Marquês de Marquesado – La Calahorra (73kms1063mts)
A estrada
mantém-se nos 10% de inclinação no mínimo. No topo da montanha começo a pedalar
para oeste. Os cenários mudam, o verde surge com frequência e dá gosto entrar
pelos bosques junto a Tócon. Há um café, é psicológico, mas sabe bem comer algo
diferente pois já percebi que uma simples “tostada com presunto” pode ser raro
encontrar por aqui. Vou precavido com algumas massas que me permitem situações
de emergência ou dificuldade em encontrar algo civilizado pela serra.
Os caminhos
de pó branco encandeiam quando o sol está alto. Volta a agarrar-se a tudo e
transporto-o comigo bem colado à pele. Finalmente consigo pedalar de forma
constante. Partilho parte da estrada com ciclistas. A sinalização de trânsito
alerta os condutores que esta zona, pela sua beleza, é frequentada por
utilizadores de bicicleta.
O cheiro de uma “panadaria” faz com que aperte os travões, faça meia-volta e tente encontrar a porta de entrada. Estou em La Peza. Deste “pueblo”, passo Lugros e chego a Cogollos de Guadix a meio da tarde. Tinha planeado ficar acampado algures num pedaço de terra da Andaluzia. Olho o gps, a linha do caminho para o dia seguinte leva-me a um sobe e desce constante a meia encosta na Sierra Nevada. Estou aos 1300 metros de altitude, percebo que se seguir o curso do rio, chego a La Calahorra ainda hoje.Os tons barrentos do Castelo de La Calahorra vêm-se de bem longe. Deambulo pelas ruelas em busca do centro da praça onde avisto a torre da Igreja. Desta posição inicio o reconhecimento para decidir onde ficar e comer. Há a opção de alojamento e alimentação no hotel Labella, tal como estava escrito no meu planeamento. Está vento, está sol, tenho uma tenda nova, porque não devo ir acampar?
Falta 1h
para abrir o supermercado. Do outro lado da rua, na esplanada do hotel estudo
as próximas etapas. Serão talvez as mais isoladas acrescentando que amanhã será
domingo e dificilmente encontrarei algo aberto.
Dia 13 Set – Etapa 3 La Calahorra _Wild Camping na
área recreativa de Paredes, 10kms depois de Alba (69 kms 1022mts)
A etapa de
hoje terminou tal como começou. A subir. Deixar a segurança da água e da comida
em Aldeire tornou-se mais um desafio a vencer. O cimento rasgado por sulcos
cobre todo o troço que me leva a afastar do povoado. A inclinação, combinada
com o peso da bicicleta, obriga a apear imensas vezes. Preciso controlar a
respiração.
A estrada
nacional que leva ao Puerto de La Raguae que corta a serra pelo meio, durou
pouco. Sei que daqui a 2/3 dias já estarei do outro lado, assim que contornar
este gigantesco maciço rochoso. Os caminhos são agora de terra e pedra escura.
São caminhos de alta montanha onde consigo pedalar de pé e manter uma cadência
constante. Movo-me, na melhor das hipóteses, a 8km/h. Os 2 bidons de 750 ml
estão quase no fim (trazer mais uma garrafa cheia como precaução, significa
mais 1kg e mais dispêndio de energia). Vou sobre o sendeiro Sulayr que me leva,
tanto sobre cumes, como por meia encosta. Tenho uma vista panorâmica
privilegiada sobre a mancha verde que cobre toda a área que consigo
observar.Numa dobra do terreno, junto a uma linha de água, encontro uma fonte. Abasteço
e deixo-me andar pelos quase 1900 metros de altitude.Tenho uma longa jornada e
uma dura etapa até ao meu destino previsto que é Abrucena. O seu casario de
casas brancas, quase encavalitadas e bem encostadas à montanha, é algo que
merece ser recordado.
Em Alba, uma
placa a indicar área recreativa suscita a minha atenção. Faltam 10km que vão
ser duros de roer. São sempre a subir. Vou com o mínimo de água, lá em cima,
numa área de merendas, não deve faltar, pensei. Pensei mal. Fiquei contente ao
avistar o local, mas após várias voltas de reconhecimento, não encontrei
qualquer líquido. Vejo vários carros estacionados pelo recinto, as instalações
sanitárias estão fechadas, o acesso às churrasqueiras vedado e várias mesas
vazias à exceção da mais afastada.Montado na bicicleta, desço a ladeira e
aproximo-me dos 3 indivíduos que têm a mesa farta. Pergunto se sabem onde posso
encontrar água? Segundo eles, não há. Um dos homens, percebendo que eu não era
espanhol, prontamente me disse que eram romenos, pegou numa garrafa de água de
1,5lt e deu-ma. Ganhei o dia.
Dia 14 Set – Etapa 4Wild Camping (WC)-Ohanes-Láujar do
Andarax
-Bayarcal(WC perto de área recreativa Universal TALAMA.
Slide) (53kms , 980 mts)
Hoje de
manhã parecia que nada cabia nos sacos de origem. Que falta de jeito logo ao
acordar. Nem a tenda nem a colchonete pareciam caber nos locais que lhes eram
destinados. Estava tudo tão mal enrolado. Quem sabe se, passar a noite com tão
pouca água me tenha afetado os neurónios. Ainda por cima, a meio da noite tenho
sempre sede e ataquei o bidon com água destinada para o trajeto até à povoação
que distava 15kms. Felizmente subi pouco. Ohanes está bem no fundo de longas
descidas onde cheguei a rolar a 60km/h.À minha frente uma cortina branca de
casas tapa a encosta da serra. À entrada, de um muro de pedras cobertas de
musgo, brota água da montanha. Pura, fresca e cristalina. Abastecei e num gesto
de refrescar o corpo, aproveitei para me lavar também.
Deixo a vila
pelo extremo oposto e mantenho-me a pedalar a pouco mais de 1000 metros de
altitude. Vou ligeiramente afastado do percurso de gps que se situa numa cota
bem mais acima. Vendo esta povoação percebo que, se pedalar sempre “perto das
nuvens” e em isolamento total, perco imenso da criação do homem que tão bem se
adaptou a estas condições inóspitas da montanha.Parei em Láujar do Andarax.
Toda esta região é um chamariz turístico com grandes potencialidades
gastronómicas. Para mim, basta um café ou uma cerveja num café local enquanto
escrevo e carrego gadgets. Poupo-me para a passagem do Puerto de La Ragua (2000 mts)
pois sei que terei que acampar bem mais alto para no outro dia chegar a
Trevélez.
Perto das
15h, chego a Bayarcal. Os poucos estabelecimentos comerciais que vi estavam
fechados. Até o restaurante ao lado da igreja e a padaria encerram à 2ªf.As
fontes de água abundam. No centro da aldeia, ao perguntar a um transeunte onde
podia comer algo, indicou-me que, voltando para trás, alguns metros mais abaixo
e bem às portas da terra, eu comeria bem no restaurante Nuno.Por 10€, sacio-me
com o “menu deldia” e quem sabe já nem
preciso jantar. Encho todas as garrafas disponíveis e vagarosamente vou ultrapassando
as curvas da estrada sempre atento a um pequeno espaço onde possa colocar a
tenda. Só vejo pedra, cardos e tojo seco sobre as ravinas que me cercam. Vou
muito carregado, não pretendo avançar demasiado e por essa razão o sítio que
escolho precisa de algum tempo de preparação do terreno. Dificilmente alguém
virá pisar este espaço um pouco afastado do “Pueblo mais alto de Almeria”. As
ovelhas e cabras não contam… Uma hora depois, passa um rebanho a trepar
ladeiras e rochas.
Dia 15 Set – Etapa 5 Bayarcal
-Laroles_Maitrena-Juviles-Trevélez (73kms , 1300 mts)
As gotas de
chuva batem com força no teto da tenda durante alguns períodos da noite. Ao
acordar, quando arrumo a tenda na bicicleta, vejo claramente a terra seca e o
formato da tenda no emaranhado de pedras e tojo que enche esta clareira.
Continuo ladeira acima em direção ao Puerto de La Ragua. Alguns quilómetros
abaixo do cume abandonei o alcatrão para depois cruzar toda a montanha que vejo
mesmo na minha frente pisando umpiso duro com terra rochosa e negra. Foi uma tortura
chegar a Juviles. Uma estrada secundária leva-me até ao “pueblo mais alto de
Espanha”, Trevélez. Esta aldeia está dividida em três bairros (Alto,
Médio e Baixo), com uma diferença de nível de até 200 metros, as casas mais
elevadas do Bairro Alto alcançam os 1.650 metros de altitude.
Depois de passar a praça central e as dezenas de lojas de presuntos, sei que tenho que chegar ao último nível para atingir o camping. A temperatura é outra por aqui e nada tem a ver com o calor que se sente quando se rola a cerca dos 1000 metros de altitude.
Dia 16 Set – Etapa 6 Trevélez – Capileira-Pampaneira-
Casa montanha (pastor) N 36 56.999 W 003 27.588 58kms 1400mts
Cansado e satisfeito
é o que me apraz escrever nesta altura colado à casa de xisto abandonada no
meio da Sierra Nevada. A estrada levou-me apressadamente de Trevélez à povoação
da Capileira. Vinha de cima, velozmente enquanto sentia que aquela malha de
casas brancas estava a chegar cada vez mais perto. As varandas das ruas estão
coloridas com mantas de todos os tamanhos e cores. Há cestas e muitos outros
artesanatos que a gente hábil da montanha elabora com tamanha arte.Faço do meu
tempo, o tempo para beber uma cerveja e “picar” algo. Alguns quilómetros mais
abaixo, outro pueblo mágico de Espanha onde cheguei num sopro. Parecia que
descia num super elevador para um nível inferior. Em Pampaneira demorei-me um pouco
mais. Aproveitei para almoçar e reforçar o saco de mantimentos que nesta altura
tem mais comida do que quando iniciei o périplo. Após 40kms percorridos começa
a pista florestal. Os restantes 18, reservam muita história para contar.
A subir,
sentado no selim da bicicleta, mesmo a 5km/h, consegue-se chegar bem alto. À
minha frente, um piso duro, um calor intenso pelas costas e dezenas de moscas
faziam-me uma espécie de escolta até encontrar uma fonte e tirar o excesso de suor
que escorria por todo o corpo.Na primeira casa florestal que passo, vejo uma
casa outrora bela, escrupulosamente bem situada junto de uma densa arborização
ao abandono. Em vão tento encontrar água. Levo quase 3h de subida, resta-me
0,5lt água e a esperança de a ver escorrer por entre as rochas. As paragens ao
longo deste trajeto são frequentes. Numa delas, pego no telefone, vejo que
tenho cobertura e dados móveis e comento que, aquela altitude a tecnologia
vence a água.
Estou a
seguir uma placa a indicar área recreativa que dista 6kms quando vejo um jeep a
descer. Faço sinal e pergunto se existe alguma fonte neste local de lazer.
- “Queres
água? – Diz o condutor.
- Sim.
Recebo em
mão uma garrafa do Luso e comento que é água de Portugal.
- Então
também és português? A fonte fica longe.
Bem!? Fica
longe e eu não a encontrei. É curioso porque quando procurava água na casa
florestal, tentava ouvir o som dela a escorrer, e por vezes, o vento a bater
nas folhas quase me iludia. Aqui não. Ouvia água em bruta a desceraceleradamente
numa calha de irrigação. A fonte? Nada. Meti as garrafas de molho e transportei
o máximo que podia na bicicleta.
Nova casa
florestal em Cañar e também aqui não tive sucesso. Ao ver alguém espreitar,
pergunto. Há por aqui alguma fonte?
-Pienso que
non
- É que
acabei de encher as garrafas num canal de irrigação.
- Non tienes
problemas. És água corriente.
Vou sobre
uma grande rota e avisto uma placa a alertar que o caminho é privado, para não
o seguir. E agora?! Aos 1700 metros de altitude não dá para ir dar a volta. Mantenho-me
no caminho a descer. Os cenários, as cores castanhas fortes da montanha ao meu
lado contrastam com tudo o que vi até agora na Sierra Nevada.Vejo bem longe 2
jeeps estacionados junto a habitações e uma casa de xisto a poucos metros de
mim. Tenciono montar a tenda pois a casa tem grades nas janelas e um cadeado na
porta. Com um olhar mais atento por um vidro partido, vejo imensa luz natural
no interior e percebo que no tardoz da habitação só existe uma meia porta para
o quintal. Assim sendo, fiz-me convidado para passar a noite em solo duro.
Dia 17 Set – Etapa 7 Casa montanha (pastor)-
Nigüelas-Dílar (Otura hotel boadbil)
41kms 860mts
Todo o vale
que se espraia para lá desta casa de pedra está coberto de nuvens. O céu
cinzento, carregado, ameaça manter a chuva que caiu durante a noite. Sinto o
ambiente mais fresco, o cheiro a terra molhada e a outras ervas que não sei
identificar é intenso.
Volto ao ponto do caminho que tinha abandonado no dia anterior. O jeep branco e o outro carro mantinham-se no mesmo sítio enquanto me fui aproximando. Transponho nova corrente de ferro para passar 2 casas de montanha com vista para uma cascata, onde, por um estreito carreiro, passei bem colado a ela.A ladainha de andar a pé continuou até ao abrigo de montanha situado alguns metros acima. É enorme, tem um enquadramento paisagístico digno de um hotel 5 estrelas. Já a meia encosta, enquanto contornava a montanha, olhava para baixo e via a casa do abrigo do pastore todo o caminho que tinha feito até ali chegar.
Sem
precisar, fui contanto as fontes que amiúde e de forma abundante iam surgindo.
No minino contei 5 até Nigüelas. Bem alto, via toda a povoação e senti-me
deslumbrado com a forma e as cores da montanha que abraçavam esta terra.Na
praça central, onde tudo flui, onde 2 bicas brotavam água, bebi e comi.
É ao longo
do rio Torrente que o caminho volta a entrar na montanha. Em sucessivos
movimentos de zigue-zague, volto ao ataque para mais um embate duro pois esta
Serra consegue manter em alta todas as expectativas até ao final. Foi sem
dúvida o troço mais bonito de toda esta travessia. Desço para Dílar onde, há 6
dias atrás deixei o carro no parque de estacionamento do hotel.
Há muito que
está na hora do check-in, no entanto, é chegada a hora da descompressão. De
fazer uma transição suave entre o modo como vivi durante 7 dias e hoje. Vou
celebrar. Vou beber um Alhambra mesmo ao lado da via rápida.
Epílogo
Menos com menos dá mais.
Em
matemática, menos com menos dá mais. Durante este périplo levantei-me ao
amanhecer rodeado de natureza, quando me deitei, não me afastei da essência.
Durante este período de tempo, fiz tudo aquilo que mais gostava. Pedalei e
estive menos tempo a…
Dormi
todas as noites sob o mesmo teto. Em todas essas noites, coloquei a tenda em
sítios diferentes, todos eles à distância de várias pedaladas.
Sou
feliz assim. Sei que moro num apartamento na maioria dos meus dias, mas não me
sinto menos feliz por isso, apenas gosto de subir à montanha porque ela está
ali, à minha frente, e preciso de chegar ao outro lado.