SUL – Breves instantes à Socapa do Mundo
Precisava
disto. Todas as limitações impostas pelo governo criaram um fosso com a
natureza. O Governo não permite a liberdade de movimentos, excepto em casos excepcionais.
Para mim, estava a ser crucial fazer uma escapadela em modo travessia.
Fui à socapa
do mundo.
Antes das 8h
da manhã estava a sair do comboio no Cais do Sodré. Do outro lado das portas de
vidro, avisto pessoas a encurtar o passo, a pararem e a serem abordadas por vários polícias. Por um
momento estou sozinho. Atrás de mim o fim da linha. Os comboios parados. Todos
os passageiros já tinham seguido aos seus destinos. Num instante pensei que
tinha mesmo que apanhar o metro e chegar a outra estação. Já no piso inferior
encontro as escadas de saída. Sigo pelas íngremes escadas rolantes, a cabeça
bem levantada a verificar se não existem surpresas à superfície. Quatro carros
da polícia estão estacionados. Todos os profissionais estão ocupados no
interior da estação e por isso dei continuidade aos meus planos de apanhar o
barco para o Montijo. Era desta cidade à beira rio que iria começar a odisseia
de 3 dias.
Os caminhos
brancos ladeados por cercas dominam para lá de Alcochete. Há uma parte do troço
ligeiramente desagradável. São vários quilómetros a partilhar a estrada com
viaturas pesadas que se deslocam para Porto Alto. Sem bermas, sem escapatória,
sente-se a deslocação do ar e a vibração dos pneus sobre o alcatrão.
Na zona das
lezírias desloco-me rapidamente. No topo das valas de abastecimento de água, a
bicicleta progride sem grande dificuldade. Nas partes mais baixas a água acumula-se,
os poços surgem com regularidade e a lama seca começa a ser traiçoeira.
É em
Coruche, já perto das 15h, que compro algo no supermercado para almoçar.
Autonomia em tempo de pandemia não combina e como são poucas as fontes,
torna-se necessário ir bem abastecido. Na ciclovia desta cidade ribatejana
avanço bem colado ao rio Sorraia. As marcações do percurso de Erra da FPC
surgem em placas metálicas cravadas no solo. A simbologia indica tratar-se de
um percurso fácil.
Garças,
lontras, o chilrear de pássaros abundam neste corredor verde coberto de vida.
As horas de luz nesta época do ano não permitem grandes aventuras para lá das
19h da tarde.Com esta, digamos, limitação, e de não ter a certeza se chego a
Mora de dia, é no Couço que procuro um supermercado. Podia fazer tudo com a luz
do frontal, no entanto, em Mora nada estaria aberto para me vender algo e em
verdade, o meu espírito não é absorver quilómetros. Quero olhar a luz na
paisagem, ver cada cor a distinguir-se no verde dominante.
Abrando o ritmo,
deixo que um habitante local montado na sua bicicleta se aproxime de mim.
- Há por
aqui algum supermercado?- questiono.
- É
desfasado daqui, mas há a loja da Teresa, responde o homem do Couço.
Foi apenas
necessário voltar atrás algumas ruas, evitar a GNR e subir a estrada de
tout-venant para olhar de frente para o pavilhão onde se lê supermercado numas
letras gigantes. Tenho mais 45 min de luz no máximo. Abasteço, o pão de kilo
alentejano sobre o saco do alforge parece a bossa de um camelo. Alguns momentos
antes, no acto de pagar junto da caixa registadora, questionei. É o único pão
que tem?
- É, diz a
Teresa.
- É para o
jantar, não tenho espaço para o levar.
- Mas olhe
que está quentinho.
-Pode ser.
Como metade ao jantar e o resto de manhã.
Afastei-me e
ao longo do canal de água fui procurando um pequeno espaço para estacar a
tenda.
Foi intenso
o frio durante a noite. A parte exterior da tenda estava tal e qual como se tivesse
chovido. O céu carregado não mostrava qualquer sinal que fosse melhorar ao
longo do dia. Depois de iniciar o movimento, alguns metros adiante, a vala
termina junto a um muro de betão. A água cai da represa com violência. Tive que
dar meia volta, apanhar um bocado de estrada nacional, passar na ponte para
chegar a Mora já do outro lado do rio. O montado é agora parte integral deste
percurso. As cancelas começam também a surgir. Atravesso o monte da Fraga
rodeado de árvores que no próximo ano já devem dar fruto. Avisto Mora a uma
distância curta, cruzo a ribeira para chegar a mais uma vila alentejana onde
não se vê vivalma.
Mesmo de
portas fechadas, o fluviário continua a ser um local onde vale sempre a pena
regressar. Os caminhos de terra batida apresentam alguns declives mas sem
grandes acumulados de subida. Desvio da estrada, salto a cerca e chego à antiga
linha de caminho de ferro de Pavia. Está tudo alagado, a superfície além da
água está em péssimo estado. Sou forçado a procurar um ponto mais alto para
melhor conseguir pedalar. Rolo sobre ervas, flores, torrões, esterco de vaca.
Por enquanto consigo manter fluido o movimento. Volto a saltar cercas e pular
valas para ver que o único caminho disponível num troço já afastado de Pavia
está ocupado com uma manada de vacas. A campainha da bike afasta pessoas mas
estes enormes bifes da vazia precisam de um outro estímulo. Uma vaca, mais
teimosa, fica de olho em mim. Eu fico de olho nela e nisto passamos alguns
minutos. Ela cede, talvez tenha percebido que o meu único sentido fosse aquele.
Altaneiro, o
Castelo de Arraiolos é uma referência no horizonte e o meu estímulo para
suportar o pedaço de caminho que me leva até Vale Paio. Nesta antiga estação
existem locais para deixar a bicicleta e também bancos para descansar. Algumas
barreiras de metal impedem que os transeuntes incautos façam o trajecto para o
lado de onde estou a vir neste momento. A saturação dos terrenos continua, no
entanto, como todo o restante troço está limpo de vegetação, é muito fácil ganhar
velocidade. Não subo a Arraiolos. Tenho alimentos para, sentado numa pedra à
beira do caminho, tomar uma refeição.
Daqui em
diante é-me familiar a ecopista. Fazia-a muita vez quando morava em Évora. As
rectas parecem não terminar, à medida que os quilómetros diminuem para a cidade
Património da humanidade, a ecopista ganha alcatrão e mais adeptos de
caminhada. Subo para o templo de Diana pela rua de sentido proibido. A outra
via passava mesmo ao lado da PSP e como era a subir e eu ia mais devagar e
carregado que o habitual, a polícia via-me.
Quem viu
Évora durante tantos anos sempre cheia de vida e de turistas, dar de caras
agora com ruas desertas, é surreal. Debaixo das arcadas era comum observar os aglomerados
de pessoas a conversarem e neste momento, todo o espaço permanece por ocupar.
Preciso
abastecer antes que a noite chegue e também porque tenho que acampar em mais um
local isolado. Vou para a horta das Figueiras onde existem vários supermercados.
Abrando até chegar à porta do Pingo Doce e ao ver o policia à entrada, dou mais
umas pedaladas para chegar até ao Lidl. O sinal está vermelho, significa que
existe fila para entrar e que no interior está gente a mais. Volto para trás, o
polícia não deve dizer nada. Compro, como, carrego e sigo para o Cromeleque dos
Almendres. Se o local era sagrado para os nossos antepassados terem arrastado
tantas pedras para esta colina, eu precisava escarrapachar a minha tenda perto
para sentir a mesma experiência neste local místico.
Dia 12Mar21 – Etapa Cromeleque Almendres – Montijo 110 kms
Como vem
sendo hábito, acordo algumas vezes durante a noite. O saco que uso como
almofada não está a resultar e acordo por vezes com dores de pescoço. Estou bem
enroscadinho dentro do saco-cama, e nem a boca fica destapada. O meu bafo serve
também para manter o interior bem quente. De repente, espreito pela abertura e
vejo uma enorme claridade. Pensei imediatamente, será que o telemóvel por estar
a carregar com o powerbank não despertou às 07h? Levantei-me, lá fora, uma
neblina cobria todo o monte. Uma manta de humidade abraçava toda a envolvente.
Eu estava lento de movimentos, esta fase da
pandemia parece que estava a paralisar-me as ações, deixando-me sem
saber o que fazer em primeiro lugar. Opto então por tirar a primeira camada da
tenda para que seque a humidade que acumulou em excesso com o orvalho da noite.
Não eram 08h00 e já oiço o tractor com atrelado a movimentar-se. O som vem na
minha direcção até que vejo o tractor chegar junto da madeira cortada que vi ontem.
Aquilo que no dia anterior eu pensava que podia acontecer, aconteceu. Minutos
depois, mais trabalhadores para recolherem a lenha cortada. Eu sei que estou
oculto pela vegetação, no entanto, tinha a noção que com as cores claras do meu
equipamento, era fácil realçar-me no verde que me rodeava. Não tive qualquer
problema. Fiz a minha vida normal, continuei a arrumar os tachos, a tomar o
pequeno-almoço e a preparar a bicicleta para arrancar. Quando saí, a equipa já
tinha ido embora também.
O terreno
torna-se mais acidentado com pedras e sulcos profundos nos caminhos. Os portões
e as ribeiras carregadas de água obrigam a tirar os sapatos. Admiro cada
árvore, cada curva deste singular trajecto até chegar a S. Sebastião da Giesteira
onde abasteci de água num minimercado e em troca, comprei uma garrafa de leite achocolatado
Ucal.
Começa a surgir sinalização da pista do Monfurado. Numa curta fracção de tempo chego a Castelos, entro e rolo na ecopista a mais de 30km/h até à Torre da Gadanha. Esta estação de comboios está em pleno funcionamento e foi preciso passar sobre as linhas da ferrovia para continuar a minha viagem.
A paisagem muda. Os caminhos brancos de tout-venant estendem-se por largos quilómetros, ocasionalmente, um troço mais mal conservado ou muito utilizado pelos tractores, apresenta sulcos profundos e alguma lama. Felizmente está seco. Estou para lá de Cabrela quando recebo a chamada do Silvano Lourenço, um amigo do Portugal Bikepacking, que decidiu juntar-se a mim. Ele não podia fazer os 3 dias comigo e por isso decidiu que na 6f, após o turno da noite, iria em sentido contrário ao meu encontro. Estávamos desfasados por vários quilómetros ainda. Ficou combinado que cada um seguiria ao seu ritmo e que iríamos dando informações da nossa posição passado algumas horas.
Fiz com que
os pedais girassem a menor velocidade, fui tirando fotos de pontos de
referência, e sobre o viaduto da A2, parei para fazer tempo e comer algo. Após
publicar no FB para que o Silvano viesse depressa para comer um ovo cozido, eis que debaixo da
sombra do viaduto, surge um ciclista. O
homem vinha estafado, tinha vindo bem depressa tentando sempre ganhar espaço
para conseguir estar comigo. Só nos conhecíamos da rede social, mas nunca houve
momentos de silêncio ou constrangimento nas nossas conversas. Os assuntos
fluíam como se nos conhecêssemos desde sempre. As bicicletas iam embaladas nos
caminhos de pó branco. São Terras de Pó, diz o vinho da casa Ermelinda. Num dia
de muito calor ou vento estas rectas intermináveis podem quebrar muitos
ciclistas. O Silvano, preocupado, dizia que eram só 8km de recta e que após
isso estaríamos a beber uma fresquinha no Pinhal Novo. Seguíamos paralelos ao caminho-de-ferro
com as nossas fiéis companheiras a rolarem livremente. Só o cansaço e a posição
estática estavam a provocar algum desconforto. A velocidade, não baixava.
As minis
para o Silvano são de 33cl, não consegui ir à segunda rodada. Faltava toda a
ciclovia até ao Montijo, seria arriscado levar tanto álcool no sangue sabendo
que neste caminho iriam existir muitas pessoas a passear e a andar de
bicicleta.
A estação do
Montijo foi o ponto de separação dos nossos destinos finais. O Silvano voltava
para casa, eu seguia para o terminal fluvial para apanhar o barco até ao Cais
do Sodré.
Tanto
polícia novamente em Lisboa! É a repetição de 4f quando estavam a controlar
quem tinha autorização para estar neste concelho? Avancei pouco a pouco até à
bilheteira. Todos os elementos policiais estavam concentrados junto ao Pingo Doce,
devia ter havido algum incidente. Passa um polícia, depois outro cruza-se
comigo, nada se passa, o problema deles é outro. Segundo o homem da CP, foi
mais um assalto naquele supermercado. É normal.