23 outubro 2018

Trans Alpes 2018 - Call of the mountains

A Clássica pelo sistema montanhoso mais impressionante da Europa



09jul18 Dia 0 – A viagem

Já passou meio-dia desde que cheguei ao aeroporto Joseph Strauss. Rara é a aventura em que não sinto um frio na barriga por ficar sempre receoso até ver a bicicleta no destino e perceber se nada lhe aconteceu. Apesar do cuidado em desmontar muitos dos componentes, eles continuam a ser frágeis e as caixas de cartão sofrem sempre nas mãos de quem as lança e tira do avião.
Fora da grande infraestrutura monto a bicicleta sem problemas, mas após várias tentativas a dar à bomba, não consegui selar o pneu tubeless da frente. Por razões de segurança vazei ligeiramente o pneu em Lisboa e parece ter sido demais pois o pneu descolou da jante. A solução é colocar uma câmara-de-ar e oportunamente numa bomba de gasolina resolverei o problema.
Não posso dizer que gosto particularmente de sair de grandes aeroportos a pedalar. É desafiante encontrar uma estrada que não nos seja vetada, neste caso, como havia muitos ciclistas a circular significava que havia uma forma segura de sair dali. Por experiência própria sei que nas grandes cidades do centro da Europa não é preciso levar o carro para chegar ao aeroporto. Dá e pode-se ir de forma tranquila de bicicleta. Talvez o caminho que tenha tomado não fosse o mais óbvio: contornei o aeroporto, passei nos seus túneis, entrei em parques de estacionamento, tudo porque imaginava e sabia que tinha de haver uma ciclovia perto.
Neste momento sigo o rio Isar há vários quilómetros, toda a zona é plana e verde e é com o som dos aviões a quebrar o silêncio que vou na direção da capital. Por todo o lado as bicicletas são aos molhos e assinalam que estou perto de uma estação de comboio ou então de um local muito popular. Uma torre chinesa e centenas de mesas perfeitamente alinhadas cobrem uma vasta área de terra que agora está saturada de população humana. Tanta vida, o cheiro a comida invade-me os sentidos e as canecas gigantes de cerveja entornam-se como minis. Este é um sítio que convida a ficar e por isso preciso ser alemão, nem que seja por uma hora. Vou recompensar este dia com uma cerveja de litro, um bretzel e uma weisswurst (salsicha branca).


Estou no jardim inglês às portas da capital alemã. Neste enorme parque público, quando está um dia ameno como o de hoje, metade da população de Munique migra para aqui e são tantas as bicicletas e pessoas a levitarem sobre a gravilha que quando se cruzam vários caminhos é preciso ter cuidado para não haver acidentes. Há medida que me aproximo da Surly Ogre, os outros velocípedes de marcas que não se repetem e que estão apoiados nas traves de madeira que balizam o recinto, ficam para trás. Alguns minutos depois, cruzo a Marienplatz para chegar à estação e tomar o comboio até Garmish.


10jul Dia 1 Garmish_Imst – 64 km 1174 mts

Ontem já passava das 21h quando cheguei a Garmish. Como era tarde e tinha a referência da localização do camping, dirigi-me na sua direção para perceber que afinal era apenas para autocaravanas. Em conversa com um habitante local fico a saber que existe outro a 7kms. A minha reação é imediata, fico algures num qualquer lugar da Alemanha.
- Olha que acampamento selvagem na Alemanha é proibido – diz-me o alemão.
Faço uma ronda pelos arredores, só vejo casas e escarpas rochosas. Sigo um trilho bem marcado que me leva a subir até encontrar um pedaço de chão plano. A vista sobre a montanha é memorável, estou apenas a 3 metros do caminho pedonal, sei que permaneço demasiado exposto. Sem muitas opções volto ao centro para tentar jantar. Às 20h todos os supermercados fecham e por isso resta-me procurar um MacDonald´s, deixar escurecer e retornar ao sítio do acampamento selvagem. Está tão escuro que mal vejo onde acertar com a estaca e mesmo que alguém se lembre de um jogging durante a noite, tenho a certeza que não distinguirá a tenda de um banco de jardim. Ao nascer do sol já a tenda estará em baixo.

Às 06h toca o despertador, oiço passos de corrida. Passa o primeiro austríaco. Falamos um pouco e ele diz que escolhi bem. Estes habitantes têm hábitos muito saudáveis e começam a surgir cada vez mais pessoas a passearem os animais. Neste momento só devem sentir o cheiro da aveia cozida e do aroma do café.

Deixo o ponteiro do relógio chegar às 08h00. Preciso abastecer, é um risco pensar que posso encontrar algo uns quilómetros avante. O conjunto arquitetónico desta cidade não me deixa indiferente, as surpresas e o fascínio do que me rodeia desenrola-se a poucos metros da minha roda.
Subi consideravelmente toda a manhã (nem estava à espera de outra coisa). Detenho-me junto a um hutte (abrigo de madeira) e fico a olhar a indumentária do casal de caminheiros para logo perceber que já estou na Áustria. A sinalização existe e aponta em tantas direções quanto as rotas de btt e de pedestrianismo existentes.
A bicicleta está por todo o lado. Vejo miúdos acompanhados pelos pais que desfrutam da sensação de equilíbrio que a bicicleta lhes dá. A idade nesta latitude não é impeditiva nem serve de desculpas para se começar a dar aos pedais. Depois é vê-los, com as peles enrugadas a movimentarem-se sem complexos.
Rolo sobre a Via Cláudia Augusta - uma rota que neste momento se apresenta suave – e estou a aproximar-se de Imst juntamente com muitos ciclistas em autonomia. Hoje fico no parque de campismo, é tempo de recuperar.



11jul Dia 2 Imst_Heidelberg hutte – 74 km 1750 mts

Estou a rebentar bolhas naquelas películas plásticas que servem para envolver e proteger objetos. Acordei, afinal era a chuva a cair sobre o teto da minha tenda. Sob um céu carregado sigo numa espécie de ciclovia entrincheirada entre o rio e a estrada. O vale é gigante. Nestas paragens é realmente preciso ajustar a escala da grandeza. A média das montanhas ronda os 2500 metros e perfilam-se umas atrás das outras. Sou mesmo um minúsculo ponto que teima em avançar.

A oferta de alojamento abunda até Landeck. Não existem bairros habitacionais ou prédios, são casa e casas quase todas a darem as boas vindas aos aventureiros em 2 rodas. É curioso que algumas placas indicam que oferecem duche e w.c?! Nesta zona de Tirol, sigo o track do gps e vou atento à sinalização que aponta os vários percursos, o caminho a seguir e a quilometragem até ao destino. Dentro de um bosque cerrado outra placa convida-me a partilhar o trilho com os caminheiros. Até a pé se tornou penoso fazer a parte inicial do single-track devido à brutalidade do desnível que caía abruptamente bem diante dos meus pés. O planeamento desta etapa tinha poucos quilómetros até Ischgl. A cidade funcionava como um porto de abrigo antes de entrar no troço que chamei de “danger zone”.

Toda a pesquisa que li dizia que as vistas mais impressionantes seriam na variante de FimberPass e depois seguindo para Vale D´Uina, mas que com o tempo chuvoso tornava-se obrigatório seguir as alternativas por estrada. Foi depois de ter visto imagens do desfiladeiro, as gargantas escavadas na rocha e pedregulhos espalhados por todo o lado, que decidi não levar alforges. Iria leve com uma tenda no suporte de bagagem e uma mochila às costas. O highligth desta aventura estava após os 2800 mts, tinha de apostar tudo.
            Chego cedo a Ischgl e nunca vi tantos hotéis juntos na minha vida. Provavelmente os teleféricos em redor e as pistas de ski no Inverno devem agitar bem a região. Abasteço com géneros fáceis de cozinhar e que permitam um jantar retemperador para mais logo pois sei que existe um hutte bem no topo e não posso arriscar ficar sem energia. A indicação da distância nas placas é agora expressa em horas, para onde vou marca 3h. É exequível, nem que tenha de empurrar a bicicleta todo o caminho. Eu seguia a linha do teleférico e a inclinação do caminho metia respeito. Pondero deixar a etapa para amanhã, mas quando olho para um cartaz com estas letras garrafais escarrapachadas dizendo “Relax. If you can…”, aquilo bateu forte. Foi como um copo de cachaça bebida de um trago que desce rápido e toca fundo no estômago. A um ritmo frenético de 4km/h e muita paragem para acalmar o coração cheguei à Suíça e alojei-me no Heidelberg Hutte a 2500 mts de altitude.



12jul Dia 3 Heidelberg hutte-FimberPass- Val D´Uina- Glorenza – 59 km 1375 mts

            A estadia correu bem. Se em toda esta travessia proporcionasse ao meu corpo estes “excessos” de boa mesa e cama com certeza que todas as etapas seriam mais fáceis.

            O sol já entrava pela janela do quarto e nem 06h eram ainda. A jornada de hoje seria solitária e dura e por isso resolvi preparar 2 boas sandes para levar. Chegar ao FimberPass custou-me 3h de subida íngreme a empurrar a bicicleta. Depois desta passagem de montanha continuei quase sempre apeado e com dificuldade, estava longe de imaginar o tempo que ainda teria de andar a pé. O bónus destes spots é que basta ver toda a profundidade de horizonte apenas uma vez, e já todo o esforço valeu a pena.


            A pedalar na direção de D´Uina - a coroa de toda esta travessia -  o ritmo é lento e  a sensação de não ter mudanças surge constantemente. Os mochileiros vão passando por mim, é um jogo onde nos vamos cruzando durante longas horas. Alcanço um grupo de 3 betetistas alemães e sigo na roda, tenho em mente aproveitar a sua presença para enquadrar as próximas fotos. Sucesso.
O movimento slow-motion que os túneis e as veredas escarpadas na rocha nos impuseram ajudou a minha tarefa de fotógrafo. Efetivamente não é um trilho aconselhável com chuva. Com a bicicleta, a puxar, a levantar e a tentar subir algumas pedras e a queda é iminente. Lá em baixo está o rio que corre velozmente e cujo som das suas águas ecoa por todo o desfiladeiro.



            Este cenário teve um preço caro para o corpo, julgo que teria sido mais inebriante se fosse ciclável (como em tempos a Ruta Del Cares). Já distante dali, era a descer, a descer, mas a descer mesmo. Num instante fiz o dobro dos quilómetros que trazia até então. Parei no camping da vila medieval de Glorenza para pernoitar, o resto do tempo iria ser chuvoso.



13jul Dia 4 Glorenza_Passo Stelvio_Bórmio_Isolaccia – 69 km 2000 mts

            A ciclovia estava colada ao camping e foi longa a minha passagem sobre ela. Hoje a etapa fugia ao trajeto original do TransAlpes. Tinha vontade de pedalar na estrada mais alta dos Alpes e ir conhecer o Passo dello Stelvio e Bormio. Como seria uma etapa extremamente dura ponderei em alternativa quebrar o percurso em dois e parar em Trafoi onde existia um parque campismo. O percurso de Trafoi até ao topo do Passo dello Stelvio corresponde às imagens que circulam pelas revistas, pelos programas de televisão e por tudo o que se relacione a carros e motas em cenários grandiosos. A localidade no sopé do Stelvio tem um condicionante, é pequena. Como a manhã ainda vai a meio, é perfeitamente exequível aventurar-me para os próximos quilómetros de subida. A numeração no alcatrão começa aos 15km, à medida que faço cada curva (na maioria com 40º), o próximo quilómetro surge a conta-gotas e parece cada vez mais distante.
A caminho do topo estão motas de alta cilindrada, uma coleção de Porches Carrera de múltiplas cores, muitas bicicletas de estrada, e eu. Só máquinas, portanto…Todos passam pouco tempo atrás de mim, mas têm tempo para verem a bandeira portuguesa e o nome escrito na placa da matrícula. Por vezes oiço, go Ricardo.

Sou de outras bandas, vou num outro ritmo para apreciar cada segundo. Não venho fazer exclusivamente este troço, ele faz parte do meu itinerário. É apenas mais um lugar de passagem. Quando os oiço tagarelar atrás de mim só pode significar que vêm de bicicleta elétrica (Meravigliosa Creatura ). Surge um casal, ele na sua “fininha” a impor um bom ritmo, e logo atrás a sua companheira numa verdadeira pasteleira com alforges a pedalar à mesma velocidade e quase sem esforço.
O cume está pejado de gente, de barracas a chamuscar salsichas, lojas com todo o tipo de souvenirs, motos e bicicletas em cada espaço disponível. É a festa da conquista, de um degrau a 2750 mts bem perto do céu. O refúgio Garibaldi consegue estar mais alto e neste porto de abrigo pode-se dormir, mas é preciso reservar com alguma antecedência. O esforço de chegar até ele irá ser compensado quando dobrar a montanha para chegar ao outro lado

Por vezes a inclinação permite-me pedalar, no longo trilho que rasga a montanha vejo um grupo imenso de caminheiros e sou forçado a parar. O sinal de trânsito indica que a passagem é proibida das 09h às 16h para as bicicletas. Uns metros atrás, num poste de madeira está a indicação de rota para betetistas confirmada pelo gps. Que lindo – e perigoso - single-track. Se me pedissem para o descrever, desenhava uma rosca
.
Foi um belo atalho à estrada que me leva ao passo del ´Umbrail. Assaltam-me as dúvidas se devo seguir para Bormio pelas famosas curvas ou enfrentar uns valentes pendentes a empurrar a bicicleta durante várias horas? Prescindo chegar ao lago Cancano por trilho, ao invés, segui a adrenalina da velocidade e de tombar (ora para a esquerda ora para a direita), no limbo entre o equilíbrio e a queda.

Bormio é mais uma bela cidade italiana, quando percebi que não havia camping (o espaço existente era para roulottes), questionei outro viajante de bicicleta que partilhava comigo a estrada. Era polaco e nada falava de inglês. Enquanto gesticulava e apontava para o gps, pegou no telefone e ligou para a filha que servia de intérprete. Do outro lado da linha percebi que o pai tinha os campings marcados e que o devia acompanhar. Não consegui seguir calado na roda do ciclista, este continuava focado em querer mostrar o parque de caravanas que eu já sabia existir. Ansioso por ver-me livre do homem disse que ficava naquele pedaço de terreno e que prescindia de eletricidade e de água. De punhos cerrados socamos um no outro e quebrou-se ali a nossa aliança para que cada um pudesse seguir o seu caminho.
Regresso ao centro da Urbe e no posto de Turismo apresentam-me um outro camping na periferia de Bormio que serve as minhas necessidades. Sigo para Valdicentro onde irei ter o prazer de no final da ciclovia encontrar o parque de campismo


14jul Dia 5 Isolaccia_Mortirolo_Temu – 80 km 2303 mts

Tenho a certeza que esta travessia não se chamava TransAlpes se fosse feita sempre em ciclovia.
Até este dia tenho rolado uma quantidade razoável de quilómetros sempre planos. É bom aproveitar pois esta foi uma etapa longa, bastante variada e uma das mais gratificantes. Trilhei sob pedras espalhadas por vários quilómetros de caminhos que abrem passagem sobre a cordilheira de montanhas que me cercam.
Como sentia o cansaço a acumular, ao ver ligeiras subidas técnicas preferia não massacrar o corpo evitando ir sentado no selim.
A gula é mesmo um pecado. Estou saciado de beleza, não interesse para onde olhe. Quantas vezes olho em frente e um cabeço de pedra ou um desnível tão acentuado não prolonga o meu olhar? Fico ansioso e preciso continuar para que esta experiência perdure
.
Como posso descrever as cidades de Ravoredo e Grosio vistas de cima? É a harmonia da construção do homem que insere a sua vida junto da natureza.  Alcanço as lojas em poucos minutos, mas a porta do supermercado fechou-se atrás do último individuo. Olho a hora de fecho, confirmo que são horas e exclamo para o italiano:
- Está fechado?
-Para ti que és ciclista, não, diz o que precisas. Eu posso esperar.
Refiro este episódio pois foi marcante ter obtido uma boa fonte de energia neste local (isto foi escrito após as 3h de subida ao Mortirolo).

            De Grosio ao Passo del Mortirolo são 14 kms e estão bem assinalados. A cada 1000 mts existe uma tabuleta onde consta a informação de quanto falta, o que fizemos e quanto vai ser a inclinação média e máxima do próximo quilómetro. São pornográficos os valores, não os vou escrever. Quando faltam 5 curvas, começa a contagem decrescente até ao topo onde repouso junto às pedras que seguram as letras do Mortirolo.
Já estou a descer, à direita surge um desvio da estrada principal, é proibido a viaturas e responsável por me obrigar a arregalar bem os olhos e despertar as endorfinas porque vou a grande velocidade por uma nesga de superfície. Chego à estrada principal e verifico que o track segue o alcatrão até Ponte Legno durante 12kms. Estou saturado de pedalar, se não precisasse de alimentos para hoje e para domingo, com certeza que acamparia em qualquer espaço verde. A curta distância vejo escrito “pista ciclabe” e com a ajuda do gps sei que vai andar colada ao rio. Foi o melhor que me aconteceu, consigo apreciar as casas de madeira nas encostas ou as marcas amarelas pintadas no chão mesmo sendo uma corrida contra o tempo porque era final de tarde e as lojas deviam encerrar sem tardar. Pouco antes do previsto, a 5 kms encontro a indicação do Presanela camping. Uma bênção seguida de uma chuvada.


15jul Dia 6 Temu_Fosinace (fundição junto rio) – 52 km 836 mts

Era um bom dia para descanso depois do Stelvio e Mortirolo. Saí tarde, perto das 9h00, a vontade de ficar na tenda estava a sobrepor-se à vontade de pedalar. As previsões meteorológicas davam chuva para a tarde e por isso resolvi aproveitar para avançar no meu périplo. Parece impossível dizer, mas mais uma vez cheguei a Ponte de Legno numa ciclovia. Para chegar mais alto, ao passo del Tonal, foi preciso juntar-me aos pelotões de ciclistas que atacavam a montanha. Cá em cima é uma outra imensidão de vida. Um corrupio de motos e bicicletas, lojas e hotéis capazes de satisfazer as necessidades de todos. Para lá deste ponto é sempre a descer ziguezagueando velozmente até ao curso do rio onde uma nova ciclovia me aguarda. Neste território de Valdisole, o envolvimento paisagístico justifica o porquê de tanto ciclista a percorrer estas pistas cicláveis.

Encurto a etapa planeada, em vez de Madonna del Campiglio opto por Dímaro onde existe um camping Resort.  Pelos 37€ que me pediram bem podiam oferecer o jantar, tenda e não apenas 10 palmos de terra. Carreguei a Ogre com água extra na certeza de encontrar um sítio melhor para ficar sem me afastar muito do track. À saída de Dímaro encontro o que no séc. XVI foi um espaço para forjar o metal. Debaixo de um telheiro permaneciam os aparelhos (alguns movidos a água e perfeitamente a funcionarem). Sem desarrumar muito o equipamento da bicicleta é aqui que tenciono dormir à noite e por isso mantenho-me em stand-by.

Com as primeiras chuvadas fortes chega o primeiro casal para se abrigar. Para a chuva, saem uns e chega outro casal com miúdos e chega também o responsável daquele museu ao ar livre. A chuva foi o meu alibi para ter a roupa pendurada, os sapatos a apanhar ar e o tacho (já cheio de água quente) entrincheirado entre 2 pedras com a bigorna a fazer pandã. Fiquei exposto, preciso procurar novo abrigo na densa área arborizada que me rodeia. À medida que vou comendo bolachas, sorrateiramente faço desaparecer os meus haveres porque daqui a poucos minutos irá haver uma demonstração das verdadeiras habilidades do cutileiro manuseando material de alguns séculos atrás.

São várias os percursos sinalizados na zona do Dolomiti di Brenta. É domingo, as pessoas e bicicletas surgem de muitos lados. Não estava fácil arranjar outro local, tenho o rio como obstáculo e grandes encostas na margem oposta. Ando dezenas de metros, sigo um trilho não marcado cuja vegetação intacta atesta a sua virgindade e que me leva a uma área nivelada que irá ser excelente para cravar a tenda. Estou numa parte alta bem coberto da vegetação. Tirando a bicharada, tenho a certeza que nenhuma alma dará por mim camuflado desta forma.


16jul Dia 7 Fosinace_Ciclovia Tiore di Trento_Bolbeno (hotel Trento)– 54 km 1703 mts

  Foi uma noite chuvosa. Quando abri os fechos da tenda vi os raios de sol à distância. Embrenhado no bosque denso, só 15kms depois já em Madonna del Campiglio consegui colocar a tenda a secar enquanto fazia mais um snack energético. Esta é outra cidade que não deixa ninguém indiferente.
A oferta hoteleira abunda e existem lojas de todas as especialidades que cativam os turistas. Percebo que todas estas cidades são famosas para quem gosta de desportos de neve. No verão, o turismo volta-se para a natureza agradando especialmente a caminheiros e betetistas.
Aproveitei a gravidade para ganhar velocidade e tempo enquanto ia deixando pequenas povoações para trás até chegar às margens do rio onde é raro não existirem ciclovias. Pouco antes de Tiore di Trento abrando, no momento hesitei se devia ou não fazer check-in no parque de campismo. Está uma tarde bonita, é cedo e eu estava com vontade de “ver mais caminho”. Na cartografia do meu gps não consta mais nenhum camping até ao lago d´Idro, e por isso começo a pensar que poderá vir a ser mais uma noite num qualquer lugar do Parque Natural Adamello Brenta. Por precaução compro mais uma embalagem de sopa instantânea e outra de risotto “alla pescatora”.

Noto que o ar começa a ficar abafado e seco, percebo que em breve chegarão fortes trovoadas e nesse momento faço um curto desvio ao track para procurar alojamento. O hotel Trento faz-me 35€ com pequeno-almoço dando-me a oportunidade de recuperar melhor, lavar roupas, carregar gadjects e a merecer um colchão ao fim de 8 dias na estrada.

17jul Dia 8  Bolbeno_Lago Roncone_Lago d´Idro_Refúgio “Campei de Sima”  – 73 km 1500 mts

  A motivação aumenta depois de algum conforto e de um pequeno-almoço reforçado com croissants. Já com  expectativa desde ontem para ver os  lagos Roncone e d´Idro, sigo maioritariamente em ciclovias praticamente novas (percebia-se pela cor das marcações), mas a envolvente não cativa. O primeiro lago é pequeno e o lago d´Idro é o fim de um ciclo e o começo de uma extenuante empreitada sobre as montanhas que tinha pela frente e que me separavam do lago di Garda do outro lado.

O percurso é maioritariamente ciclável mas tem de ser conquistado na módica velocidade de 4km/h sobre muito cascalho solto que escondem raízes traiçoeiras. Quando é necessário passar linhas de água surgem single-tracks que permitem contornar a montanha e entrar em zonas de arvoredo completamente cerrado. É sobre ele que vou protegido do sol e onde sinto sempre uma brisa fresca que atenua o aumento de temperatura corporal. O isolamento aqui é total. Consegui às 3h da tarde comer um “paninho” (sandes) na Tratoria Italiana que está aberta em Campovalle.
Pelas curvas de nível da cartografia sabia o que me esperava. Também sabia que não chegaria a Desenzano del Garda neste dia e também não sabia nem imaginava onde iria ficar a dormir nos próximos quilómetros. Por essa razão equacionei ficar na Trattoria que por sinal também tinha quartos. O problema é que os ponteiros do relógio ainda tinham muito espaço para andar e eu precisava continuar a sentir o sangue a correr nas veias.
Muito, mas muito tempo depois já não tinha água e era a primeira vez que não via ribeiras ou água a jorrar de vários lados. Estava cada vez mais fechado dentro da imensa vegetação, o caminho de pé posto dificultava a caminhada e havia sítios em que a bicicleta e eu tínhamos de passar em separado. Felizmente tenho a noção que, no espaço que falta para chegarem as 10h da noite (e eu a ficar sem luz), muito quilómetro consigo palmilhar. Só precisava de encontrar água.

Uma tabuleta fixada na árvore indica existir no sentido que tomava um refúgio de montanha. Tenho-o marcado no gps, estou longe, o caminho vai manter-se igual, vai ser um grande desafio. Como é bom sentir a felicidade de algo que ambicionamos há tanto tempo e que pode fazer toda a diferença no momento que estamos a viver. Foi o que aconteceu quando vi a igreja de pedra e os 2 edifícios na clareira. As portas e janelas tinham as portadas trancadas, no entanto, as setas que indicavam o w.c e o bivaque acenderam-me a esperança de que nem tudo estaria fechado. As casas de banho estão imaculadas. Subo as escadas, rodo uma maçaneta e espera-me uma grande cozinha com lareira e quarto com beliches.

A fogueira acesa tranquiliza e dá um certo encanto ao ambiente. É certo que não está a ser partilhado, mas é mesmo por isso que deve ficar escrito para que possa ser revisitado. Onde estiver, lembrar-me-ei sempre que foi aquela lareira que cozinhou a embalagem de sopa que trazia há mais de 2 dias e que hoje me safou.

18jul Dia 9 Refúgio “Campei de Sima”_Desenzano del Garda_Simione_Peschiera del Garda  – 63 km 1035 mts

Hoje a água tem sabor, a fumo. Além disso o meu corpo e roupa padecem do mesmo cheiro. Usei a fogueira para cozinhar a sopa e para ferver água porque o aviso na fonte próxima dizia que a água não era potável, por isso, deduzi que a água da casa de banho e da cozinha viessem do mesmo sítio. Estranhei, carreguei água de um ribeiro antes, bebi e nada se passou.
Após sair do refúgio foi sempre a descer até à civilização. Ao encontrar um supermercado da marca “Auchan” parecia que queria comprar tudo (há muitos dias que não observava tanta variedade e quantidade de produtos). Aqui aplicava-se a máxima “não vá ao supermercado com fome! Eu ia, com fome de 9 dias. Resisti e acabei por comprar mais uns pacotes de risotto e sopa. Ainda assim parece que comi mais hoje que nos últimos 3 dias somados.

Num instante cheguei às margens do maior e mais belo lago de Itália, o Lago di Garda. Efetivamente a estrada SS45Bis que vem de Riva Del Garda não convida a grandes distrações. No dia em que estava bem instalado no hotel Tento em Breguzzo, mas já escaldado do empeno acumulado até então, comecei a pensar se não seria boa ideia derivar para Riva Del Garda e fazer toda a estrada SS45Bis que ladeia o lago até Desenzano? Estaria em breve no sítio ideal para mudar de direção. O grande fator contra era sem dúvida os comentários de anteriores utilizadores deste track que desaconselhavam totalmente este troço do caminho devido aos túneis e as estradas não terem bermas. Como medida de segurança há inclusive referências para se utilizarem luzes e coletes refletores.
Segui o instinto e dei à Surly Ogre o que ela mais gosta. Devorar natureza em estado puro. Voltando às cidades do lago, são todas cheias de turistas. Demorei algum tempo a acostumar-me ao tráfico e movimento humano. Em Sirmione, para entrar no centro histórico é necessário deixar a bicicleta parqueada 100 mts antes. Não tenho alternativa, sigo o rebanho e permaneço entre muros apenas o tempo necessário para algumas fotos.

Fiquei às portas de Peshiera del Garda no camping Wein que é banhado pelas águas do lago e onde aproveito para nadar e observar as montanhas que por mim foram conquistadas. O sol está inclemente (atenção que não é uma queixa). É tão bom ter de comprar mais protetor solar (nunca tinha gasto a embalagem que levo nas minhas viagens).

19jul Dia 10 Peschiera del Garda_Verona (Camping San Pietro)  – 92 km 155 mts

Levantei-me bem cedo tal e qual como sempre faço quando ando a viajar e cheguei à hora de ponta a Verona.
Nesta cidade “Património da Humanidade” também se circula bem de bicicleta pelas várias ciclovias espalhadas pela cidade. Rolar em estrada de alcatrão com algumas incursões por ciclovias não apresenta grande dificuldade especialmente se for pouca quilometragem e evitar-se as horas de maior calor.

Faz tempo que fico a olhar para o anfiteatro romano e fico na conversa com um casal de portugueses que me chamaram pelo nome graças à placa da matrícula. É notória a diferença massificada do turismo a partir das 10h da manhã. Por cada via que exploro são várias as pontes que me permitem entrar e sair do centro histórico. A ponte Piedra leva-me até ao topo do Castel San Pietro onde está situado um magnifico, muito fresco e com uma vista memorável, parque de campismo. Com a brisa da tarde vou voltar para observar o corrupio e a alma desta cidade abraçada pelo rio Adige.


20jul Dia 11 Verona_ Montegrotto (Thermal Camping Sporting Center) – 100 km 121 mts

Como dizem os italianos, hoje de manhã está um “caldo” (muito calor). Apesar de existir uma autoestrada paralela a esta estrada secundária onde rolo, a estrada tem demasiado tráfego até Vicenza. Chega-se a esta outra cidade Património Mundial da Unesco muito depressa porque mais uma vez a estrada plana permite grandes velocidades de andamento.

Adoro deambular pelas ruas de bicicleta. A cada momento surge uma descoberta, um abrir de olhos mais forte perante todo um espaço arquitetónico diferente do meu país. Adoro sentar-me nas praças centrais e sentir a vibração de quem fica nas esplanadas, de sentir a deslocação do ar dos que se deslocam em bicicleta. Tão depressa passa uma senhora idosa, como outra senhora de vestido com saltos altos, ou outra ainda com o miúdo sentado no selim e ela de pé a pedalar. Aparecem de todo o lado, vêm de todos os cantos e não encontram desculpas para deixar a bicicleta em casa.

A etapa para hoje é longa. Segue para Pádua pela ciclovia Bacchiglione e circulo maioritariamente em cima de um dique numa posição privilegiada que me permite observar os campos de cultivo e as igrejas que vão surgindo com frequência. O rio Bacchigliore serviu de base a esta ciclovia que está bem sinalizada verticalmente, mas não necessita de ostentação da cor amarela ou branca marcada no pavimento para lhe dar sentido. Esta ciclovia demarca-se “per si” do verde dominante.


Tenho quase 100 kms feitos e falta-me meia dúzia para chegar a Pádua ou Montegrotto. Desvio para sul para procurar o parque de campismo conhecido pelas suas águas termais e ao chegar nem tenho tempo para montar a tenda. Uma chuva e ventos fortes durante largos minutos confinam-me a um pequeno telheiro onde estão situadas as máquinas que fazem circular as águas pelas várias piscinas. Cheira a enxofre e o chão está quente, hoje a tenda não sairá do saco. Em forma de desabafo comento no facebook que já dormi melhor e sem ter de pagar como aqui.


21jul Dia 12  Montegrotto_Camping Fusina – 12 km 100 mts

Retornei à vila Domenico (onde tinha abandonado a ciclovia ontem) para, mais uma vez, sobre o canal, chegar a Pádua só tendo a natureza como companheira.
Nas praças amontoam-se pessoas e tendas a vender produtos locais, é uma sorte não haver acidentes entre bicicletas. Nas áreas pedonais mais movimentadas está um indivíduo com um colete refletor vestido e cada vez que vê alguém sentado no selim, apita. Bicicleta aqui é pela mão. Deambulo pelas ruas estreitas. Todas me fascinam porque o seu conjunto forma um labirinto onde é tão fácil perdermo-nos

Além dos famosos monumentos como a Basílica S.António ,parto á procura da gelataria Romana “Le piu bella del mundo” que desde 1947 fabricam gelados. São divinais, recuando às outras gelatarias que também ostentam este galardão (é difícil comparar), apenas sei que quando estes momentos saltam do sótão da memória, eu tive uma experiência única.

A maneira mais fácil e rápida para sair do agitado centro de Pádua é seguir pelo anel fluvial que circunda toda a cidade e desemboca na ciclovia de Brenta. Sem desnível, deslizo até jusante do rio Brenta onde está situado o parque de campismo Fusina bem colado a Veneza. Neste local existe a ligação de barco para a cidade, no entanto, é proibido o transporte de bicicletas e também o é em toda a área de Veneza.

Amanhã cruzarei Marghera e atravessarei a ponte della Libertá até ao meu destino final esperando que chegue a Filipa com a mala da bicicleta que vem de Lisboa e possamos desta forma ir para o nosso alojamento na Plaza de S.Marcos.


Está na hora de contemplar a perfeição que o Homem tentou alcançar em Veneza, desfilar diante dos belos palácios e sentir o lugar-comum  Dove LA Terra Gira intorno AL MARE.



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