A
Clássica pelo sistema montanhoso mais impressionante da Europa
09jul18
Dia 0 – A viagem
Já passou meio-dia desde que cheguei
ao aeroporto Joseph Strauss. Rara é a aventura em que não sinto um frio na
barriga por ficar sempre receoso até ver a bicicleta no destino e perceber se
nada lhe aconteceu. Apesar do cuidado em desmontar muitos dos componentes, eles
continuam a ser frágeis e as caixas de cartão sofrem sempre nas mãos de quem as
lança e tira do avião.
Fora da grande infraestrutura monto a
bicicleta sem problemas, mas após várias tentativas a dar à bomba, não consegui
selar o pneu tubeless da frente. Por razões de segurança vazei ligeiramente o
pneu em Lisboa e parece ter sido demais pois o pneu descolou da jante. A
solução é colocar uma câmara-de-ar e oportunamente numa bomba de gasolina
resolverei o problema.
Não posso dizer que gosto
particularmente de sair de grandes aeroportos a pedalar. É desafiante encontrar
uma estrada que não nos seja vetada, neste caso, como havia muitos ciclistas a
circular significava que havia uma forma segura de sair dali. Por experiência
própria sei que nas grandes cidades do centro da Europa não é preciso levar o
carro para chegar ao aeroporto. Dá e pode-se ir de forma tranquila de
bicicleta. Talvez o caminho que tenha tomado não fosse o mais óbvio: contornei
o aeroporto, passei nos seus túneis, entrei em parques de estacionamento, tudo
porque imaginava e sabia que tinha de haver uma ciclovia perto.
Neste momento sigo o rio Isar há
vários quilómetros, toda a zona é plana e verde e é com o som dos aviões a quebrar
o silêncio que vou na direção da capital. Por todo o lado as bicicletas são aos
molhos e assinalam que estou perto de uma estação de comboio ou então de um
local muito popular. Uma torre chinesa e centenas de mesas perfeitamente
alinhadas cobrem uma vasta área de terra que agora está saturada de população
humana. Tanta vida, o cheiro a comida invade-me os sentidos e as canecas
gigantes de cerveja entornam-se como minis. Este é um sítio que convida a ficar
e por isso preciso ser alemão, nem que seja por uma hora. Vou recompensar este dia
com uma cerveja de litro, um bretzel e uma weisswurst (salsicha branca).
Estou no jardim inglês às portas da
capital alemã. Neste enorme parque público, quando está um dia ameno como o de
hoje, metade da população de Munique migra para aqui e são tantas as bicicletas
e pessoas a levitarem sobre a gravilha que quando se cruzam vários caminhos é
preciso ter cuidado para não haver acidentes. Há medida que me aproximo da Surly
Ogre, os outros velocípedes de marcas que não se repetem e que estão apoiados
nas traves de madeira que balizam o recinto, ficam para trás. Alguns minutos
depois, cruzo a Marienplatz para chegar à estação e tomar o comboio até
Garmish.
10jul Dia 1 Garmish_Imst
– 64 km 1174 mts
Ontem já passava das 21h quando
cheguei a Garmish. Como era tarde e tinha a referência da localização do
camping, dirigi-me na sua direção para perceber que afinal era apenas para
autocaravanas. Em conversa com um habitante local fico a saber que existe outro
a 7kms. A minha reação é imediata, fico algures num qualquer lugar da Alemanha.
-
Olha que acampamento selvagem na Alemanha é proibido – diz-me o alemão.
Faço uma ronda pelos arredores, só
vejo casas e escarpas rochosas. Sigo um trilho bem marcado que me leva a subir
até encontrar um pedaço de chão plano. A vista sobre a montanha é memorável,
estou apenas a 3 metros do caminho pedonal, sei que permaneço demasiado exposto.
Sem muitas opções volto ao centro para tentar jantar. Às 20h todos os
supermercados fecham e por isso resta-me procurar um MacDonald´s, deixar
escurecer e retornar ao sítio do acampamento selvagem. Está tão escuro que mal vejo
onde acertar com a estaca e mesmo que alguém se lembre de um jogging durante a
noite, tenho a certeza que não distinguirá a tenda de um banco de jardim. Ao
nascer do sol já a tenda estará em baixo.
Às 06h toca o despertador, oiço passos
de corrida. Passa o primeiro austríaco. Falamos um pouco e ele diz que escolhi
bem. Estes habitantes têm hábitos muito saudáveis e começam a surgir cada vez
mais pessoas a passearem os animais. Neste momento só devem sentir o cheiro da
aveia cozida e do aroma do café.
Deixo o ponteiro do relógio chegar às
08h00. Preciso abastecer, é um risco pensar que posso encontrar algo uns
quilómetros avante. O conjunto arquitetónico desta cidade não me deixa
indiferente, as surpresas e o fascínio do que me rodeia desenrola-se a poucos
metros da minha roda.
Subi consideravelmente toda a manhã (nem
estava à espera de outra coisa). Detenho-me junto a um hutte (abrigo de
madeira) e fico a olhar a indumentária do casal de caminheiros para logo perceber
que já estou na Áustria. A sinalização existe e aponta em tantas direções
quanto as rotas de btt e de pedestrianismo existentes.
A bicicleta está por
todo o lado. Vejo miúdos acompanhados pelos pais que desfrutam da sensação de
equilíbrio que a bicicleta lhes dá. A idade nesta latitude não é impeditiva nem
serve de desculpas para se começar a dar aos pedais. Depois é vê-los, com as
peles enrugadas a movimentarem-se sem complexos.
Rolo sobre a Via Cláudia Augusta - uma
rota que neste momento se apresenta suave – e estou a aproximar-se de Imst juntamente
com muitos ciclistas em autonomia. Hoje fico no parque de campismo, é tempo de
recuperar.
11jul Dia 2 Imst_Heidelberg
hutte – 74 km 1750 mts
Estou a rebentar bolhas naquelas
películas plásticas que servem para envolver e proteger objetos. Acordei,
afinal era a chuva a cair sobre o teto da minha tenda. Sob um céu carregado
sigo numa espécie de ciclovia entrincheirada entre o rio e a estrada. O vale é
gigante. Nestas paragens é realmente preciso ajustar a escala da grandeza. A
média das montanhas ronda os 2500 metros e perfilam-se umas atrás das outras.
Sou mesmo um minúsculo ponto que teima em avançar.
A oferta de alojamento abunda até Landeck.
Não existem bairros habitacionais ou prédios, são casa e casas quase todas a
darem as boas vindas aos aventureiros em 2 rodas. É curioso que algumas placas
indicam que oferecem duche e w.c?! Nesta zona de Tirol, sigo o track do gps e
vou atento à sinalização que aponta os vários percursos, o caminho a seguir e a
quilometragem até ao destino. Dentro de um bosque cerrado outra placa
convida-me a partilhar o trilho com os caminheiros. Até a pé se tornou penoso
fazer a parte inicial do single-track devido à brutalidade do desnível que caía
abruptamente bem diante dos meus pés. O planeamento desta etapa tinha poucos
quilómetros até Ischgl. A cidade funcionava como um porto de abrigo antes de
entrar no troço que chamei de “danger zone”.
Toda a pesquisa que li dizia que as
vistas mais impressionantes seriam na variante de FimberPass e depois seguindo
para Vale D´Uina, mas que com o tempo chuvoso tornava-se obrigatório seguir as
alternativas por estrada. Foi depois de ter visto imagens do desfiladeiro, as gargantas
escavadas na rocha e pedregulhos espalhados por todo o lado, que decidi não
levar alforges. Iria leve com uma tenda no suporte de bagagem e uma mochila às
costas. O highligth desta aventura estava após os 2800 mts, tinha de apostar
tudo.
Chego cedo a Ischgl e nunca vi
tantos hotéis juntos na minha vida. Provavelmente os teleféricos em redor e as
pistas de ski no Inverno devem agitar bem a região. Abasteço com géneros fáceis
de cozinhar e que permitam um jantar retemperador para mais logo pois sei que
existe um hutte bem no topo e não posso arriscar ficar sem energia. A indicação
da distância nas placas é agora expressa em horas, para onde vou marca 3h. É
exequível, nem que tenha de empurrar a bicicleta todo o caminho. Eu seguia a
linha do teleférico e a inclinação do caminho metia respeito. Pondero deixar a
etapa para amanhã, mas quando olho para um cartaz com estas letras garrafais
escarrapachadas dizendo “Relax. If you can…”, aquilo bateu forte. Foi como um
copo de cachaça bebida de um trago que desce rápido e toca fundo no estômago. A
um ritmo frenético de 4km/h e muita paragem para acalmar o coração cheguei à
Suíça e alojei-me no Heidelberg Hutte a 2500 mts de altitude.
12jul Dia 3 Heidelberg
hutte-FimberPass- Val D´Uina- Glorenza – 59 km 1375 mts
A estadia correu bem. Se em toda
esta travessia proporcionasse ao meu corpo estes “excessos” de boa mesa e cama
com certeza que todas as etapas seriam mais fáceis.
O sol já entrava pela janela do
quarto e nem 06h eram ainda. A jornada de hoje seria solitária e dura e por
isso resolvi preparar 2 boas sandes para levar. Chegar ao FimberPass custou-me
3h de subida íngreme a empurrar a bicicleta. Depois desta passagem de montanha
continuei quase sempre apeado e com dificuldade, estava longe de imaginar o
tempo que ainda teria de andar a pé. O bónus destes spots é que basta ver toda
a profundidade de horizonte apenas uma vez, e já todo o esforço valeu a pena.
A pedalar na direção de D´Uina - a
coroa de toda esta travessia - o ritmo é
lento e a sensação de não ter mudanças
surge constantemente. Os mochileiros vão passando por mim, é um jogo onde nos
vamos cruzando durante longas horas. Alcanço um grupo de 3 betetistas alemães e
sigo na roda, tenho em mente aproveitar a sua presença para enquadrar as
próximas fotos. Sucesso.
O movimento slow-motion que os túneis e as veredas
escarpadas na rocha nos impuseram ajudou a minha tarefa de fotógrafo. Efetivamente
não é um trilho aconselhável com chuva. Com a bicicleta, a puxar, a levantar e
a tentar subir algumas pedras e a queda é iminente. Lá em baixo está o rio que
corre velozmente e cujo som das suas águas ecoa por todo o desfiladeiro.
Este cenário teve um preço caro para
o corpo, julgo que teria sido mais inebriante se fosse ciclável (como em tempos
a Ruta Del Cares). Já distante dali, era a descer, a descer, mas a descer
mesmo. Num instante fiz o dobro dos quilómetros que trazia até então. Parei no
camping da vila medieval de Glorenza para pernoitar, o resto do tempo iria ser
chuvoso.
13jul Dia 4 Glorenza_Passo
Stelvio_Bórmio_Isolaccia – 69 km 2000 mts
A ciclovia estava colada ao camping
e foi longa a minha passagem sobre ela. Hoje a etapa fugia ao trajeto original
do TransAlpes. Tinha vontade de pedalar na estrada mais alta dos Alpes e ir
conhecer o Passo dello Stelvio e Bormio. Como seria uma etapa extremamente dura
ponderei em alternativa quebrar o percurso em dois e parar em Trafoi onde
existia um parque campismo. O percurso de Trafoi até ao topo do Passo dello
Stelvio corresponde às imagens que circulam pelas revistas, pelos programas de
televisão e por tudo o que se relacione a carros e motas em cenários
grandiosos. A localidade no sopé do Stelvio tem um condicionante, é pequena.
Como a manhã ainda vai a meio, é perfeitamente exequível aventurar-me para os
próximos quilómetros de subida. A numeração no alcatrão começa aos 15km, à
medida que faço cada curva (na maioria com 40º), o próximo quilómetro surge a conta-gotas
e parece cada vez mais distante.
A caminho do topo estão motas de alta
cilindrada, uma coleção de Porches Carrera de múltiplas cores, muitas
bicicletas de estrada, e eu. Só máquinas, portanto…Todos passam pouco tempo
atrás de mim, mas têm tempo para verem a bandeira portuguesa e o nome escrito
na placa da matrícula. Por vezes oiço, go Ricardo.
Sou de outras bandas, vou num outro
ritmo para apreciar cada segundo. Não venho fazer exclusivamente este troço,
ele faz parte do meu itinerário. É apenas mais um lugar de passagem. Quando os
oiço tagarelar atrás de mim só pode significar que vêm de bicicleta elétrica (Meravigliosa Creatura ). Surge um casal, ele na
sua “fininha” a impor um bom ritmo, e logo atrás a sua companheira numa verdadeira
pasteleira com alforges a pedalar à mesma velocidade e quase sem esforço.
O cume está pejado de gente, de
barracas a chamuscar salsichas, lojas com todo o tipo de souvenirs, motos e
bicicletas em cada espaço disponível. É a festa da conquista, de um degrau a
2750 mts bem perto do céu. O refúgio Garibaldi consegue estar mais alto e neste
porto de abrigo pode-se dormir, mas é preciso reservar com alguma antecedência.
O esforço de chegar até ele irá ser compensado quando dobrar a montanha para
chegar ao outro lado
Por vezes a inclinação permite-me
pedalar, no longo trilho que rasga a montanha vejo um grupo imenso de caminheiros
e sou forçado a parar. O sinal de trânsito indica que a passagem é proibida das
09h às 16h para as bicicletas. Uns metros atrás, num poste de madeira está a
indicação de rota para betetistas confirmada pelo gps. Que lindo – e perigoso -
single-track. Se me pedissem para o descrever, desenhava uma rosca
.
Foi um belo atalho à estrada que me
leva ao passo del ´Umbrail. Assaltam-me as dúvidas se devo seguir para Bormio
pelas famosas curvas ou enfrentar uns valentes pendentes a empurrar a bicicleta
durante várias horas? Prescindo chegar ao lago Cancano por trilho, ao invés,
segui a adrenalina da velocidade e de tombar (ora para a esquerda ora para a
direita), no limbo entre o equilíbrio e a queda.
Bormio
é mais uma bela cidade italiana, quando percebi que não havia camping (o espaço
existente era para roulottes), questionei outro viajante de bicicleta que partilhava
comigo a estrada. Era polaco e nada falava de inglês. Enquanto gesticulava e
apontava para o gps, pegou no telefone e ligou para a filha que servia de
intérprete. Do outro lado da linha percebi que o pai tinha os campings marcados
e que o devia acompanhar. Não consegui seguir calado na roda do ciclista, este
continuava focado em querer mostrar o parque de caravanas que eu já sabia
existir. Ansioso por ver-me livre do homem disse que ficava naquele pedaço de
terreno e que prescindia de eletricidade e de água. De punhos cerrados socamos
um no outro e quebrou-se ali a nossa aliança para que cada um pudesse seguir o
seu caminho.
Regresso ao centro da Urbe e no posto
de Turismo apresentam-me um outro camping na periferia de Bormio que serve as
minhas necessidades. Sigo para Valdicentro onde irei ter o prazer de no final
da ciclovia encontrar o parque de campismo
14jul Dia 5 Isolaccia_Mortirolo_Temu
– 80 km 2303 mts
Tenho
a certeza que esta travessia não se chamava TransAlpes se fosse feita sempre em
ciclovia.
Até este dia tenho rolado uma quantidade razoável de quilómetros
sempre planos. É bom aproveitar pois esta foi uma etapa longa, bastante variada
e uma das mais gratificantes. Trilhei sob pedras espalhadas por vários
quilómetros de caminhos que abrem passagem sobre a cordilheira de montanhas que
me cercam.
Como sentia o cansaço a acumular, ao ver ligeiras subidas técnicas
preferia não massacrar o corpo evitando ir sentado no selim.
A gula é mesmo um pecado. Estou
saciado de beleza, não interesse para onde olhe. Quantas vezes olho em frente e
um cabeço de pedra ou um desnível tão acentuado não prolonga o meu olhar? Fico ansioso
e preciso continuar para que esta experiência perdure
.
Como posso descrever as cidades de Ravoredo e
Grosio vistas de cima? É a harmonia da construção do homem que insere a sua vida
junto da natureza. Alcanço as lojas em
poucos minutos, mas a porta do supermercado fechou-se atrás do último individuo.
Olho a hora de fecho, confirmo que são horas e exclamo para o italiano:
- Está fechado?
-Para ti que és ciclista, não, diz o
que precisas. Eu posso esperar.
Refiro
este episódio pois foi marcante ter obtido uma boa fonte de energia neste local
(isto foi escrito após as 3h de subida ao Mortirolo).
De Grosio ao Passo del Mortirolo são
14 kms e estão bem assinalados. A cada 1000 mts existe uma tabuleta onde consta
a informação de quanto falta, o que fizemos e quanto vai ser a inclinação média
e máxima do próximo quilómetro. São pornográficos os valores, não os vou escrever.
Quando faltam 5 curvas, começa a contagem decrescente até ao topo onde repouso
junto às pedras que seguram as letras do Mortirolo.
Já estou a descer, à direita surge um
desvio da estrada principal, é proibido a viaturas e responsável por me obrigar
a arregalar bem os olhos e despertar as endorfinas porque vou a grande velocidade
por uma nesga de superfície. Chego à estrada principal e verifico que o track
segue o alcatrão até Ponte Legno durante 12kms. Estou saturado de pedalar, se
não precisasse de alimentos para hoje e para domingo, com certeza que acamparia
em qualquer espaço verde. A curta distância vejo escrito “pista ciclabe” e com
a ajuda do gps sei que vai andar colada ao rio. Foi o melhor que me aconteceu,
consigo apreciar as casas de madeira nas encostas ou as marcas amarelas
pintadas no chão mesmo sendo uma corrida contra o tempo porque era final de
tarde e as lojas deviam encerrar sem tardar. Pouco antes do previsto, a 5 kms encontro
a indicação do Presanela camping. Uma bênção seguida de uma chuvada.
15jul
Dia 6 Temu_Fosinace (fundição junto rio) – 52 km 836 mts
Era um bom dia para descanso depois do
Stelvio e Mortirolo. Saí tarde, perto das 9h00, a vontade de ficar na tenda
estava a sobrepor-se à vontade de pedalar. As previsões meteorológicas davam
chuva para a tarde e por isso resolvi aproveitar para avançar no meu périplo. Parece
impossível dizer, mas mais uma vez cheguei a Ponte de Legno numa ciclovia. Para
chegar mais alto, ao passo del Tonal, foi preciso juntar-me aos pelotões de
ciclistas que atacavam a montanha. Cá em cima é uma outra imensidão de vida. Um
corrupio de motos e bicicletas, lojas e hotéis capazes de satisfazer as necessidades
de todos. Para lá deste ponto é sempre a descer ziguezagueando velozmente até
ao curso do rio onde uma nova ciclovia me aguarda. Neste território de
Valdisole, o envolvimento paisagístico justifica o porquê de tanto ciclista a percorrer
estas pistas cicláveis.
Encurto a etapa planeada, em vez de Madonna
del Campiglio opto por Dímaro onde existe um camping Resort. Pelos 37€ que me pediram bem podiam oferecer o
jantar, tenda e não apenas 10 palmos de terra. Carreguei a Ogre com água extra
na certeza de encontrar um sítio melhor para ficar sem me afastar muito do
track. À saída de Dímaro encontro o que no séc. XVI foi um espaço para forjar o
metal. Debaixo de um telheiro permaneciam os aparelhos (alguns movidos a água e
perfeitamente a funcionarem). Sem desarrumar muito o equipamento da bicicleta é
aqui que tenciono dormir à noite e por isso mantenho-me em stand-by.
Com as primeiras chuvadas fortes chega
o primeiro casal para se abrigar. Para a chuva, saem uns e chega outro casal
com miúdos e chega também o responsável daquele museu ao ar livre. A chuva foi
o meu alibi para ter a roupa pendurada, os sapatos a apanhar ar e o tacho (já
cheio de água quente) entrincheirado entre 2 pedras com a bigorna a fazer
pandã. Fiquei exposto, preciso procurar novo abrigo na densa área arborizada
que me rodeia. À medida que vou comendo bolachas, sorrateiramente faço
desaparecer os meus haveres porque daqui a poucos minutos irá haver uma
demonstração das verdadeiras habilidades do cutileiro manuseando material de alguns
séculos atrás.
São várias os percursos sinalizados na
zona do Dolomiti di Brenta. É domingo, as pessoas e bicicletas surgem de muitos
lados. Não estava fácil arranjar outro local, tenho o rio como obstáculo e
grandes encostas na margem oposta. Ando dezenas de metros, sigo um trilho não
marcado cuja vegetação intacta atesta a sua virgindade e que me leva a uma área
nivelada que irá ser excelente para cravar a tenda. Estou numa parte alta bem
coberto da vegetação. Tirando a bicharada, tenho a certeza que nenhuma alma
dará por mim camuflado desta forma.
16jul Dia 7 Fosinace_Ciclovia
Tiore di Trento_Bolbeno (hotel Trento)– 54 km 1703 mts
Foi uma noite chuvosa. Quando abri os
fechos da tenda vi os raios de sol à distância. Embrenhado no bosque denso, só
15kms depois já em Madonna del Campiglio consegui colocar a tenda a secar
enquanto fazia mais um snack energético. Esta é outra cidade que não deixa
ninguém indiferente.
A oferta hoteleira abunda e existem lojas de todas as
especialidades que cativam os turistas. Percebo que todas estas cidades são
famosas para quem gosta de desportos de neve. No verão, o turismo volta-se para
a natureza agradando especialmente a caminheiros e betetistas.
Aproveitei a gravidade para ganhar
velocidade e tempo enquanto ia deixando pequenas povoações para trás até chegar
às margens do rio onde é raro não existirem ciclovias. Pouco antes de Tiore di
Trento abrando, no momento hesitei se devia ou não fazer check-in no parque de
campismo. Está uma tarde bonita, é cedo e eu estava com vontade de “ver mais
caminho”. Na cartografia do meu gps não consta mais nenhum camping até ao lago
d´Idro, e por isso começo a pensar que poderá vir a ser mais uma noite num
qualquer lugar do Parque Natural Adamello Brenta. Por precaução compro mais uma
embalagem de sopa instantânea e outra de risotto “alla pescatora”.
Noto que o ar começa a ficar abafado e
seco, percebo que em breve chegarão fortes trovoadas e nesse momento faço um
curto desvio ao track para procurar alojamento. O hotel Trento faz-me 35€ com
pequeno-almoço dando-me a oportunidade de recuperar melhor, lavar roupas,
carregar gadjects e a merecer um colchão ao fim de 8 dias na estrada.
17jul Dia 8 Bolbeno_Lago Roncone_Lago d´Idro_Refúgio
“Campei de Sima” – 73 km 1500 mts
A
motivação aumenta depois de algum conforto e de um pequeno-almoço reforçado com
croissants. Já com expectativa desde
ontem para ver os lagos Roncone e d´Idro,
sigo maioritariamente em ciclovias praticamente novas (percebia-se pela cor das
marcações), mas a envolvente não cativa. O primeiro lago é pequeno e o lago
d´Idro é o fim de um ciclo e o começo de uma extenuante empreitada sobre as
montanhas que tinha pela frente e que me separavam do lago di Garda do outro
lado.
O
percurso é maioritariamente ciclável mas tem de ser conquistado na módica velocidade
de 4km/h sobre muito cascalho solto que escondem raízes traiçoeiras. Quando é
necessário passar linhas de água surgem single-tracks que permitem contornar a
montanha e entrar em zonas de arvoredo completamente cerrado. É sobre ele que
vou protegido do sol e onde sinto sempre uma brisa fresca que atenua o aumento
de temperatura corporal. O isolamento aqui é total. Consegui às 3h da tarde
comer um “paninho” (sandes) na Tratoria Italiana que está aberta em Campovalle.
Pelas
curvas de nível da cartografia sabia o que me esperava. Também sabia que não chegaria
a Desenzano del Garda neste dia e também não sabia nem imaginava onde iria
ficar a dormir nos próximos quilómetros. Por essa razão equacionei ficar na
Trattoria que por sinal também tinha quartos. O problema é que os ponteiros do
relógio ainda tinham muito espaço para andar e eu precisava continuar a sentir
o sangue a correr nas veias.
Muito, mas muito tempo depois já não tinha água e
era a primeira vez que não via ribeiras ou água a jorrar de vários lados.
Estava cada vez mais fechado dentro da imensa vegetação, o caminho de pé posto
dificultava a caminhada e havia sítios em que a bicicleta e eu tínhamos de
passar em separado. Felizmente tenho a noção que, no espaço que falta para
chegarem as 10h da noite (e eu a ficar sem luz), muito quilómetro consigo
palmilhar. Só precisava de encontrar água.
Uma
tabuleta fixada na árvore indica existir no sentido que tomava um refúgio de
montanha. Tenho-o marcado no gps, estou longe, o caminho vai manter-se igual,
vai ser um grande desafio. Como é bom sentir a felicidade de algo que
ambicionamos há tanto tempo e que pode fazer toda a diferença no momento que
estamos a viver. Foi o que aconteceu quando vi a igreja de pedra e os 2
edifícios na clareira. As portas e janelas tinham as portadas trancadas, no
entanto, as setas que indicavam o w.c e o bivaque acenderam-me a esperança de
que nem tudo estaria fechado. As casas de banho estão imaculadas. Subo as
escadas, rodo uma maçaneta e espera-me uma grande cozinha com lareira e quarto
com beliches.
A
fogueira acesa tranquiliza e dá um certo encanto ao ambiente. É certo que não
está a ser partilhado, mas é mesmo por isso que deve ficar escrito para que
possa ser revisitado. Onde estiver, lembrar-me-ei sempre que foi aquela lareira
que cozinhou a embalagem de sopa que trazia há mais de 2 dias e que hoje me
safou.
18jul Dia 9 Refúgio
“Campei de Sima”_Desenzano del Garda_Simione_Peschiera del Garda – 63 km 1035 mts
Hoje
a água tem sabor, a fumo. Além disso o meu corpo e roupa padecem do mesmo
cheiro. Usei a fogueira para cozinhar a sopa e para ferver água porque o aviso
na fonte próxima dizia que a água não era potável, por isso, deduzi que a água
da casa de banho e da cozinha viessem do mesmo sítio. Estranhei, carreguei água
de um ribeiro antes, bebi e nada se passou.
Após
sair do refúgio foi sempre a descer até à civilização. Ao encontrar um
supermercado da marca “Auchan” parecia que queria comprar tudo (há muitos dias
que não observava tanta variedade e quantidade de produtos). Aqui aplicava-se a
máxima “não vá ao supermercado com fome! Eu ia, com fome de 9 dias. Resisti e
acabei por comprar mais uns pacotes de risotto e sopa. Ainda assim parece que
comi mais hoje que nos últimos 3 dias somados.
Num
instante cheguei às margens do maior e mais belo lago de Itália, o Lago di
Garda. Efetivamente a estrada SS45Bis que vem de Riva Del Garda não convida a
grandes distrações. No dia em que estava bem instalado no hotel Tento em
Breguzzo, mas já escaldado do empeno acumulado até então, comecei a pensar se
não seria boa ideia derivar para Riva Del Garda e fazer toda a estrada SS45Bis
que ladeia o lago até Desenzano? Estaria em breve no sítio ideal para mudar de
direção. O grande fator contra era sem dúvida os comentários de anteriores utilizadores
deste track que desaconselhavam totalmente este troço do caminho devido aos
túneis e as estradas não terem bermas. Como medida de segurança há inclusive
referências para se utilizarem luzes e coletes refletores.
Segui
o instinto e dei à Surly Ogre o que ela mais gosta. Devorar natureza em estado
puro. Voltando às cidades do lago, são todas cheias de turistas. Demorei algum
tempo a acostumar-me ao tráfico e movimento humano. Em Sirmione, para entrar no
centro histórico é necessário deixar a bicicleta parqueada 100 mts antes. Não
tenho alternativa, sigo o rebanho e permaneço entre muros apenas o tempo
necessário para algumas fotos.
Fiquei
às portas de Peshiera del Garda no camping Wein que é banhado pelas águas do
lago e onde aproveito para nadar e observar as montanhas que por mim foram
conquistadas. O sol está inclemente (atenção que não é uma queixa). É tão bom
ter de comprar mais protetor solar (nunca tinha gasto a embalagem que levo nas
minhas viagens).
19jul Dia 10 Peschiera
del Garda_Verona (Camping San Pietro) – 92
km 155 mts
Levantei-me
bem cedo tal e qual como sempre faço quando ando a viajar e cheguei à hora de
ponta a Verona.
Faz
tempo que fico a olhar para o anfiteatro romano e fico na conversa com um casal
de portugueses que me chamaram pelo nome graças à placa da matrícula. É notória
a diferença massificada do turismo a partir das 10h da manhã. Por cada via que
exploro são várias as pontes que me permitem entrar e sair do centro histórico.
A ponte Piedra leva-me até ao topo do Castel San Pietro onde está situado um
magnifico, muito fresco e com uma vista memorável, parque de campismo. Com a
brisa da tarde vou voltar para observar o corrupio e a alma desta cidade abraçada
pelo rio Adige.
20jul Dia 11 Verona_
Montegrotto (Thermal Camping Sporting Center) – 100 km 121 mts
Como
dizem os italianos, hoje de manhã está um “caldo” (muito calor). Apesar de existir
uma autoestrada paralela a esta estrada secundária onde rolo, a estrada tem demasiado
tráfego até Vicenza. Chega-se a esta outra cidade Património Mundial da Unesco
muito depressa porque mais uma vez a estrada plana permite grandes velocidades
de andamento.
Adoro
deambular pelas ruas de bicicleta. A cada momento surge uma descoberta, um
abrir de olhos mais forte perante todo um espaço arquitetónico diferente do meu
país. Adoro sentar-me nas praças centrais e sentir a vibração de quem fica nas esplanadas,
de sentir a deslocação do ar dos que se deslocam em bicicleta. Tão depressa
passa uma senhora idosa, como outra senhora de vestido com saltos altos, ou
outra ainda com o miúdo sentado no selim e ela de pé a pedalar. Aparecem de
todo o lado, vêm de todos os cantos e não encontram desculpas para deixar a bicicleta
em casa.
A
etapa para hoje é longa. Segue para Pádua pela ciclovia Bacchiglione e circulo
maioritariamente em cima de um dique numa posição privilegiada que me permite
observar os campos de cultivo e as igrejas que vão surgindo com frequência. O rio
Bacchigliore serviu de base a esta ciclovia que está bem sinalizada verticalmente,
mas não necessita de ostentação da cor amarela ou branca marcada no pavimento
para lhe dar sentido. Esta ciclovia demarca-se “per si” do verde dominante.
Tenho
quase 100 kms feitos e falta-me meia dúzia para chegar a Pádua ou Montegrotto.
Desvio para sul para procurar o parque de campismo conhecido pelas suas águas
termais e ao chegar nem tenho tempo para montar a tenda. Uma chuva e ventos
fortes durante largos minutos confinam-me a um pequeno telheiro onde estão
situadas as máquinas que fazem circular as águas pelas várias piscinas. Cheira
a enxofre e o chão está quente, hoje a tenda não sairá do saco. Em forma de
desabafo comento no facebook que já dormi melhor e sem ter de pagar como aqui.
21jul Dia 12 Montegrotto_Camping Fusina – 12 km 100 mts
Retornei
à vila Domenico (onde tinha abandonado a ciclovia ontem) para, mais uma vez,
sobre o canal, chegar a Pádua só tendo a natureza como companheira.
Nas
praças amontoam-se pessoas e tendas a vender produtos locais, é uma sorte não
haver acidentes entre bicicletas. Nas áreas pedonais mais movimentadas está um
indivíduo com um colete refletor vestido e cada vez que vê alguém sentado no
selim, apita. Bicicleta aqui é pela mão. Deambulo pelas ruas estreitas. Todas
me fascinam porque o seu conjunto forma um labirinto onde é tão fácil
perdermo-nos
Além
dos famosos monumentos como a Basílica S.António ,parto á procura da gelataria
Romana “Le piu bella del mundo” que desde 1947 fabricam gelados. São divinais,
recuando às outras gelatarias que também ostentam este galardão (é difícil
comparar), apenas sei que quando estes momentos saltam do sótão da memória, eu
tive uma experiência única.
A
maneira mais fácil e rápida para sair do agitado centro de Pádua é seguir pelo
anel fluvial que circunda toda a cidade e desemboca na ciclovia de Brenta. Sem
desnível, deslizo até jusante do rio Brenta onde está situado o parque de
campismo Fusina bem colado a Veneza. Neste local existe a ligação de barco para
a cidade, no entanto, é proibido o transporte de bicicletas e também o é em
toda a área de Veneza.
Amanhã
cruzarei Marghera e atravessarei a ponte della Libertá até ao meu destino final
esperando que chegue a Filipa com a mala da bicicleta que vem de Lisboa e
possamos desta forma ir para o nosso alojamento na Plaza de S.Marcos.
Está
na hora de contemplar a perfeição que o Homem tentou alcançar em Veneza,
desfilar diante dos belos palácios e sentir o lugar-comum Dove
LA Terra Gira intorno AL MARE.
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