22 outubro 2018

Portugal Divide 2018






22mai18 Dia 0 – A viagem Sim, eu sei, é um cliché, uma viagem…começa sempre com a primeira pedalada. Começa sempre no início, e onde é esse início? Em Cevide, no marco nº1 começa Portugal. Este é o marco que faltava para complementar as minhas aventuras. O marco onde inicia o meu País. O regresso às origens:


 O regresso ao contacto com as pessoas que amam o seu território e que têm prazer em receber quem não conhecem simplesmente porque ousaram atravessar Portugal de bicicleta começando no ponto mais a norte;
  O privilégio de ser recebido pelo Mário Monteiro (Amigos de Cevide) na sua casa e pelo Presidente da Junta Sr. David. Perceber o que nos une;
 Poder preparar o jantar, conversar e beber aguardente com mais de 30 anos que - tenho a certeza - está reservada para os momentos mais intimistas;
 A surpresa de calcorrear um caminho secular, carregado de história, acompanhado por um desconhecido que ontem era um amigo que ainda não conhecia.
  Ver o sol nascer, sentir a brisa da manhã e tocar no marco nº1. É, desta forma que gosto de iniciar uma viagem. Muito antes da primeira pedalada.


23mai Dia 1 Cevide Ferreira (Casa da Fraga. Sra Ângela) – 189km 2857mts



Foi amor à primeira vista assim que descobri este desafio de bikepacking. Os moldes onde assentava mexiam comigo: Bicicleta, autonomia, orientação, longa distâncias... Não sou fã de estrada, por outro lado, sabia que fazer todo o trajeto com mais de 1200 kms por todo o terreno, me consumiria no mínimo 10 dias. Confesso, queria ir rápido, mas também queria ter prazer nesta aventura. Assim, para cada etapa, desenhei 2 percursos. Imaginei-me de carro, numa viagem pelas estradas nacionais sem grandes mistérios para destapar. Do outro lado da moeda era peregrino, levaria na sacola em alternativa o caminho mais curto e mais belo. No momento certo, quando à minha frente me fosse revelada a “terra prometida”, optaria pelo caminho onde seria mais feliz. Só assim faria sentido esta odisseia. Há quem apregoe que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes. Se eu vivesse essa filosofia, nunca sairia de casa. Hoje, bem longe, volto à ponte de madeira onde está o antigo Controlo Fronteiriço de Cevide, carimbo a credencial e empurro a bicicleta ladeira acima. Inverto o sentido para pisar a ponte espanhola sobre o rio Minho e que liga os 2 países. Inaugurei-me com uns atalhos à estrada poucos quilómetros após Cevide mas rapidamente percebi que a inclinação era extrema e que precisaria de muita atenção às minhas alternativas no gps. Ao longo da viagem, antes de Xinzo de Limia, desviei por pequenas aldeias e chegava com a carrinha do pão. Ouvia um dialeto familiar, os “perros” quase me mordiam os calcanhares e o cheiro a lareira no ar são precisamente os motivos que tornam as aldeias típicas e que merecem uma visita. Dura pouco tempo este namoro porque a longa subida em estrada até Xinzo de Limia provoca outro tipo de emoções.
Algures, bebo uma sopa de litro em tempo recorde. Volto ao selim e volto a subir. A sensação é que a sopa não se dissipa (talvez estivesse muito espessa). Falta muito pouco para a centena de quilómetros e a bonita vila de Verin fica onde está.
Sigo para Chaves, rápido e sem grande história ou cenários para memorizar. Caio na tentação e coloco os auscultadores para que a música me faça um pouco de companhia até à entrada do meu País.À entrada de Portugal a porta da Alfândega está fechada há muito. Sem fronteiras, sou livre, paro apenas para tirar uma fotografia.


A cidade de Chaves está muito perto, daqui sigo as sequências de curvas que me levam até Valpaços. Os valores da quilometragem no meu planeamento não batem certo com as distâncias que ainda me faltam percorrer. Acima dos 100 km, verifico ter um erro de 10% no meu ciclómetro. Dificilmente me preocupo com números, neste caso, como o desgaste físico estava acima da minha média, todos os metros contavam (10km pode bem representar mais uma ou duas horas em cima do selim). Após Vilarinho de Agrochão, desço vertiginosamente a mais de 60km/h em curvas sucessivas e em algo semelhante ao poço da morte, vou até ao fundo até chegar ao vale. Passo sobre a ponte do rio Rabaçal. Agora sim, começo a subir. Na minha cabeça tilintavam as palavras do Alexandre Direitinho que tinha tido uma subida difícil até Bouça (quilómetros antes), não dei por ela. Ou então as palavras do Silvano Lourenço, outro dos finishers do Portugal Divide (PD ), que tinha chegado estafado a Verin com 1900 mts de acumulado de subidas .Já tudo tinha passado, olhando esta subida, agora sim, estava com dificuldades.
Era um misto de muitos quilómetros já nas pernas e algo exageradamente íngreme até Arcas. Numa paragem de autocarro, deito-me, o peito dói, custa a respirar, o estômago arde. Descanso um pouco e pondero seriamente ficar por aqui, não tenho condições para alcançar Podence porque as subidas continuam fortes. Quase sem articular uma palavra tento questionar alguém (nestas localidades da Raia é, e será sempre uma tarefa difícil. A desertificação não é apenas uma palavra), sobre algum local onde possa principalmente comer. Dormir é uma opção. Mando parar um motociclista. Indago sobre potenciais locais para me darem alimento. Aponta-me para 5kms adiante, eu, duvido se avanço ou não. A manter-se a orografia ficaria aqui nas Arcas onde existia um Turismo Rural. O velhote da motorizada insiste – Aqui é mais caro, além disso, em Ferreira há uma senhora que lhe fará algo para comer. A dor é contínua, o mau estar também. Tento vomitar várias vezes e nada sai. Lembro-me do episodio que tive no final do IronMan. Seria cansaço ou excesso de esforço? Eu sei que forcei o andamento, que não tinha dormido bem há 2 noites. Seria disso? Entretanto, o sabor a malte surge-me na boca e pensei na cerveja gelada que bebi em Torre de Dona Chama. Tive uma paragem de digestão. Arrasto-me até Ferreira para encontrar o meu descanso. Pela forma como falo, a dona da Casa da Fraga apercebe-se do meu estado. Peço-lhe que me faça algo para comer. Não consigo jantar, tento, insisto, não dá. O pão com presunto enrola-se com a língua, mas não passa disso. Talvez o chá que a Ângela faz me ajude. Deito-me cedo. Sobre a mesa no piso de baixo ficam os pratos com a salada de grão que poderei comer a qualquer momento.

 (24mai) D2 Ferreira- Ventozelo – 162km 2232 acumulado (tasquinha do Xambé D. Lisete) 

São 06h00, estou melhor e escrevo. Tenho fome, o estômago está a ruminar e vou tentar jantar, mas antes disso, novo vómito e o resto de sopa encalhada, saiu. Tenho a mesa vazia. Parece que na noite anterior a Ângela foi bater à minha porta 2 vezes e não ouvi nada. Diz que apanhou um valente susto comigo e eu sem conseguir descrever a avalanche de dores que me toldaram ontem. Prescindo da salada de grão e avanço com apetite para um pequeno almoço convencional. Sou a mesma pessoa, agora num novo corpo. Ataco subidas, a albufeira de Azibo e sinto-me revigorado e cheio de energia. Apesar do estado anímico, não quero arriscar e ir provar o gin tónico em Santulhão às 10h da manhã. Segui para Carção à procura do 2º carimbo.
Tenho as coordenadas do ponto, tenho a fotografia do local, mas gosto sempre de interagir com os habitantes. Quando pergunto a uma velhota - Onde fica o parque com peças metálicas? Responde-me - E para que serve? Foi intuitivo, chegava lá sem perguntar, mas assim perdia o âmago da viagem que são as pessoas. Estou em Trás-os-Montes, abdico do caminho em terra batida que encurta a minha ligação a Vimioso devido à chuva e à passagem sobre o rio: não compensa fugir ao alcatrão. Sem me preocupar com as horas, comprei o que precisava para almoçar algures – numa das muitas paragens de autocarro - no Vimioso. O miradouro de Penhas da Saúde em Paradela era longe dali. Segui para mais um ponto do nosso país que me despertava curiosidade. Entre as rochas e o precipício estava o pastor Júlio com as suas cabras, conversamos e ambos temos uma vista privilegiada sobre a barragem de Salto de Castro.

O rio Douro corre devagar, tiro fotografias que me ajudam a parar o tempo, tudo ali convida à contemplação. Marco na credencial a minha passagem e parto sem pressa. Sigo por um estradão de terra batida, cruzo a povoação de Duas Igrejas e o caminho, cheio de vegetação, começa a ficar cada vez mais estreito e fechado. O ritmo abranda, necessito perceber no gps as várias opções que me levam até Moncorvo. Sou abordado (novamente) por habitantes locais em francês. Será que é o chapéu listado de laranja e branco com letras garrafais a dizer BIC que os induz neste erro, ou será que são os estrangeiros que mais fazem este tipo de aventuras em duas rodas? Continuo por atalhos, deixo marcas profundas na vegetação virgem e a Surly Ogre mantém jus ao seu nome e poupa-me dezenas de quilómetros em alcatrão. Já passava da hora do chá, agora mantinha-me o mais possível por estradas secundárias enquanto fui compreendendo que não chegava à Torre de Moncorvo.


As aldeias sucediam-se, todas elas praticamente nada tinham, só casas e fontes. Com mais de 140 kms já percorridos, perto de Algosinho, lembro-me bem do impacte que a placa com a indicação de 11% de subidas, teve sobre mim. O relógio apontava para lá das 20h. A hora de luz não era muita, no horizonte, vários relâmpagos faziam aparições. Todo o céu coberto de cinzento denotava que algo estava para acontecer. Pedalo com gosto, a gerar adrenalina pois não sei onde vou ficar. Provavelmente só vou encontrar água para juntar os pacotes de aveia que trago como emergência e serão o meu jantar. Quase não andei nada, no ecrã do gps surgem pintalgadas pequenas povoações, são apenas 3 ou 4 casas. Miraculosamente uma senhora caminha na estrada. Sinalizo a minha aproximação tocando a campainha, não a pretendo assustar. - Minha senhora, onde posso comprar um bocado de pão para comer? - O “xenhor donde é”? - Lisboa - E está a “paxear de bixicleta xoxinho”? Lá para o fundo à uma senhora que faz comida. Avanço com motivação, nada me garante que esteja aberto. Viro uma esquina, o toldo amarelo, as luzes acesas salvam-me. Enquanto me explico à Lisete, a dona da Tasquinha do Xambé, lá fora cai (mais uma tromba de água.) Consigo comer e ainda dormir no salão de festas, amanhã será igual? Com calma…um dia de cada vez.



 (25mai) D3 Ventozelo- Gouveia – 160km 1895 acumulado (BV Gouveia)

 Preparo os sacos e equipo a bicicleta, lá fora a cor do céu na alvorada não é pacífica. A cidade de Torre de Moncorvo era a minha referência nas próximas horas. Surgem amiúde indicações para uma ecopista. Não tenho a certeza que direção toma, mas o estado pouco cuidado de conservação, rapidamente me leva para a estrada.
A Torre, de Moncorvo, deixa-se ver bem de longe. Mais um monumento que fica para trás enquanto desfruto de um itinerário lindo até ao Pocinho com sucessivas curvas e contracurvas a descer por vales permanentes. O Douro estava cada vez mais perto. Sou repetente, seja em que ano for, a descida para o Pocinho encanta-me sempre.
Rolo sobre as encostas do nosso famoso Douro Vinhateiro, volto a fazer uma visita ao centro histórico de V.N Foz Coa onde recupero com alguns produtos regionais. Sobre a N102, o caminho flui pelo imenso vale quase sempre lado a lado com a IP2. Cruzo a ponte sobre o Mondego e entro em Celorico da Beira. Passo a cidade pelo seu centro e o empedrado das suas ruas chocalha tudo o que não vai bem preso à bicicleta. Faz tempo que o vento vem subindo de intensidade. O frio vem com ele. Num instante, sou surpreendido com um imenso aguaceiro que dura mais de 1h.
É numa antiga estação de serviço que procuro refúgio. Há um abrandamento natural quando a água começa a cair sobre mim. Já só ambiciono chegar até ao sopé da montanha, quem sabe até ao Sabugueiro. O tempo avança, não parece sensato tentar uma subida à Torre, mesmo que matematicamente os quilómetros restantes e as horas ainda cheguem para ser hipoteticamente feito com luz. Entro em Gouveia, não justifica andar mais 2h nestas condições. Isto é um desafio, não precisa ser um calvário. Como o único hotel disponível nesta cidade custa 50€ por quarto, preciso encontrar uma alternativa. Ainda que desproporcionado para as horas de conforto que posso usufruir, felizmente posso pagar este valor mas desvirtua todo o espírito, sacrifício e atitude que trago para algo quando me monto numa bicicleta. Converso com o Cmdt dos Bombeiros, sei que entenderá e acudirá a esta necessidade de ficar num bocado de solo apenas por poucas horas.

 (26mai) D4 Gouveia – Sertã – 159km 2741 acumulado (acampamento) 

Quando ando nestas viagens, assim que acordo o sentido que fica mais apurado é o da audição. Esteja entre paredes ou no cubículo da tenda, são os ouvidos que tentam captar como está o tempo lá fora. O clima estava hoje de mau humor, o sol deu-me as boas vindas, mas na subida à Torre ficou tímido à chegada.
A ascensão é sempre uma viagem longa e solitária feita na maioria das vezes com algum desconforto em relação ao frio. Até chegar ao desvio para o Sabugueiro, nenhum carro passou por mim. Avanço a menos de 1 m/s, é incrível como os minutos crescem. A lei da gravidade funciona, neste caso não está a meu favor. Aos 1500 metros o meu bafo dilui-se no nevoeiro, contorno a lagoa comprida e sigo para o prémio da montanha. Uma sandes de presunto e queijo.
Não faltam pedras por aqui. Sei que o tupperware que contém o carimbo está debaixo de uma. Quem me visse a andar de um lado para o outro, para trás e para a frente e a levantar pedras durante 30 min. poderia pensar que estava a apanhar caracóis . Estou gelado e a grande velocidade que vou atingir até Unhais da Serra não vai ajudar. Vou atento ao rio Zêzere, a Grande Rota (GRZ) que o ladeia é uma excelente opção paisagística e permite evitar muitas subidas. Vejo muitos betetistas em sentido contrário, confirmam-me que neste troço depois de Paul há muitas pedras. Os pneus semi-slick e o tempo chuvoso tornam estas pedras extremamente escorregadias, pedalo com cuidado até às minas da Panasqueira por single-tracks colados as margens do rio como um fio dental.
Toda a envolvente é cerrada de pinheiros, mas sair de Cambas (junto ao Zêzere) é dantesco porque a inclinação para chegar a Pizoia é acentuada e longa. Afortunadamente os fogos do verão passado não atingiram esta parte por onde passo. Julguei que iria ver tudo castanho. Oleiros surge após alguns quilómetros por longas descidas que ajudam a relaxar O percurso não estava a colaborar, nos limites de Oleiros, penso se devo avançar para a Sertã. Desconheço o itinerário mas sei que segue pela N238. Esta nacional está convertida no IC8 e rasga vastos pedaços de terra, atravessa vales e converte o panorama em horizontes de dão gosto observar numa estrada tão larga com as duas rodas a girarem a alta velocidade. Na Sertã, enquanto jantava no restaurante pic-nic, escrevia as crónicas em atraso e olhava para o exterior a ver a luz a sumir-se. Preocupa-me encontrar um local para acampar com alguma luz.
A uns metros da N238, estico o fio, ato-o a uma árvore e coloco a lona para construir uma tenda improvisada. Em redor da árvore existem silvas aos molhos e o resultado foi uma esteira furada, uma noite dura e o acordar várias vezes ainda de noite porque não tenho porta algumas melgas vieram visitar-me

 D5 Sertã – Melriça – Cabo da Roca –Oeiras 265km 2172 acumulado 

Continuo em autonomia, debaixo do viaduto mesmo junto à entrada do IC-8 tomo o pequeno-almoço. À medida que chego a Vila de Rei e ao pico da Melriça, a temperatura desce abruptamente. Um nevoeiro cerrado quebra todos os horizontes. À entrada da vila preciso de novo reforço alimentar e algo quente que eleve o moral. Percorro a N2 a toda a velocidade para Abrantes.
Passo pontes, cruzo o Tejo, o Zêzere, passo Constância e fico do lado esquerdo do rio. Não sendo provavelmente o percurso mais curto até Lisboa, é, para mim, o mais tranquilo. Passei anos a trabalhar neste pedaço de terra junto ao Tejo. Conheço cada espaço de mochila às costas, de carta militar na mão, arma à bandoleira e botas calçadas. Percorri muitos caminhos que hoje reconheço. Não foram sempre dias felizes, a instrução nos Pára-Quedistas nunca foi fácil, era jovem, estava motivado. Lá do céu, à porta do avião, varria todo aquele imenso vazio sem me preocupar com o que iria encontrar lá em baixo. Hoje, olho o céu e por muito que queira lá voltar, é nesta estrada na margem esquerda do Tejo que tenho de me concentrar.

Escolhi chegar aos limites de Lisboa fazendo o percurso que considero mais belo. Foi uma decisão fácil, as bermas são generosas, as povoações genuinamente típicas e tantas vezes por aqui rolei com a bicicleta de estrada. Mais uma ponte, estou na Chamusca, mas não a atravesso. Paragem da ponte, é o nome do restaurante onde petisco algo. Alguns anos atrás, era adolescente e era aqui que via dezenas de homens fardados de azul com uma boina verde na cabeça (jamais pensei vir a pertencer a este corpo de elite). Sinto o vento, estas zonas são descampadas e pouca proteção oferecem. É assim que atravesso toda a lezíria bem para lá de VFX. Os arrozais e a imensa planície deste solo permitem que desfrute de uma vastidão de quilómetros a pedalar. Já vou perdido quando passo por Vialonga, ao mesmo tempo estou curioso como será o caminho que cruza todo este maciço até ao mar. Sigo para Loures atento aos sinais do gps. Já pedalo há muitos anos pela zona de Lisboa e arredores e hoje consigo ficar animado com a mão cheia de ruralidades que tenho o prazer de contemplar. Não é um percurso fácil. É ventoso, as antenas eólicas junto a Almargem do Bispo significam algo O altivo Castelo de Sintra mostra-me a direção. Opto por o contornar para chegar a Colares.
É praticamente noite e as luzes da bicicleta vão a marcar a minha posição. Horas depois um vento arrepiante gela-me os ossos no cabo da Roca. É aqui que tenho de carimbar a credencial. Tirando a desgraçada subida para sair do Ponto mais Ocidental de Portugal, quando cheguei à marginal consegui rolar a 30km/h mesmo tenho nesse dia já 260kms. O Ricky Roque que tinha ido ter comigo ao Cabo da Roca, seguia atrás no seu carro e assistia às razias que fazia aos passeios quando pestanejava os olhos por mais tempo.
O frio gélido que sentia nas pernas não me deixava doer os músculos. Cansado como estava e com o adiantar da hora (23h) nem tirei fotografias ou registei o que seja em vídeo. Numa fração de segundos, comi, adormeci e o sol já tinha nascido quando pego na bicicleta novamente.

 (28mai) D6 Oeiras - Ferreira do Alentejo160km 1095 acumulado (Casa do Infante. D.Carlota) 

Saio em segurança pelo passeio marítimo de Oeiras. O contraste é grande com os cenários a norte do Tejo. Num País tão pequeno cabe tanta oferta paisagística que se torna impossível não nos apaixonarmos por ele e de abraçar desafios como o PT Divide que nos leva a ver tudo intensamente.
É gerir este manancial de não saber onde vou parar, como o corpo vai reagir a tanta quilometragem, como me vou organizar para a noite ou comprar comida e buscar água o que me motiva e desafia. Com a quilometragem diária que tenho alcançado, e, diga-se de verdade, um abuso, a adrenalina toma conta de mim e é como se vivesse mais anos apenas com o facto de ver o amanhecer e continuar a pedalar para lá do sol se por. A única história que posso contar do Montijo para Setúbal são as mesmas que tenho quando faço estradas aborrecidas e movimentadas. Apanho o ferry e opto por seguir da Comporta em direção a Alcácer do Sal. A paisagem surge agora matizada com mais pinheiros que criam alguns corredores de sombra ou de teto contra a chuva, mas a monotonia de uma estrada tão longa instala-se quando se rola a baixa velocidade. Estou a ver bem alto o Castelo de Alcácer, cruzo a linha do comboio, atravesso hortas para entrar numa ciclovia que me leva até ao centro da cidade.
Preciso almoçar, de sentar-me e tomar uma refeição usando faca e garfo. Transpiro. Que forças ocultas se esconderão debaixo do alcatrão da N5? O Torrão surge há imenso tempo no ecrã, mas demoro em ver as suas casas com paredes caiadas de branco com riscas amarelas. Vou meditando ao ouvir o som da água que corre na ribeira do Sado ali bem ao lado e que consegue ser mais rápida. Optei por este trajeto por ser mais seguro, mais bonito e entrar na N2 o mais cedo possível. Todo o amante de viagens português neste momento fez ou fala nesta mítica estrada. Nasce em Chaves (onde estive alguns dias atrás) e desemboca em Faro. Ganho velocidade e novo fôlego para um novo périplo. Passam poucos minutos das 17h e ainda não decidi se avanço mais 30kms até Aljustrel ou fico-me por Ferreira do Alentejo. Faço 2 telefonemas para negociar e saber preços de hotel. O valor e as condições ditarão as minhas próximas ações. É a hospitalidade da Casa do Infante, um edifício senhorial em Ferreira, bem recuperado e decorado com bom gosto, que me convida a ficar

 (29mai) D7 Ferreira do Alentejo- Praia de Faro 155km 1369 acumulado (Intercidades para Lisboa) 

Outra noite mal dormida, acordo sempre com sede ou com imenso calor. Foi a primeira vez de manhã que não me apeteceu pedalar. Este sentimento foi-se sentindo ao longo do dia à medida que os quilómetros avançavam.
Cheira a Alentejo, é inconfundível o cheiro desta região. As longas retas vão ficando para trás, mas alimentam-se de um cansaço e corroem todos os músculos. “Destilo” alcatrão. Estou numa fase que nem sei o que me apetece, exceto ver Faro. Apresenta-se à minha frente a serra do Caldeirão. Entro em terras algarvias e a placa com a indicação Faro começa a surgir com frequência. É um sobe e desce constante até ao Ameixial, local onde paro para me obrigar a comer algo. Na casa de pasto, a velhota atrás do balcão afiança-me que para lá de S.Brás de Alportel seria mais fácil e sempre a descer. Foram sábias as palavras desta anciã. Às portas da cidade paro para colocar as coordenadas da caixa com o carimbo do ponto mais a sul de Portugal. São 16h10, é tarde para tudo o que preciso fazer. Os olhos esbugalham-se ao perceber que faltam 20 kms (ida e volta) até à ilha de Faro. A minha prioridade mudou. Não quero perder o Intercidades das 17h56. Sobre os longínquos passadiços de madeira, a ser perseguido por cães, vou vendo passar as casas dos pescadores. Chego às dunas e caminho. Danado de pressa, vou olhando o relógio para sentir a pressão. Não posso abrandar. Não posso perder o comboio. Encontrar o que se procura nem sempre é imediato e em boa altura recebo ajuda por telemóvel do Carlos Sousa para localizar a caixa. Com a velocidade que atingi na N125, ganho 20min de folga e aguardo, ofegante, suado…. Estava tranquilo na plataforma a aguardar juntamente com o aglomerado de passageiros que se regista aquela hora. Entretanto, na linha 1 chega o comboio regional. Este mantém-se parado durante algum tempo quando faltam 4 min para a partida do rápido (penso que deve estar atrasado). Nos altifalantes, uma voz ecoa pela estação “vai sair da linha nº6 o comboio IC …”. Saio em sprint, os cleats martelam o pavimento (na cabeça saltitam pensamentos como: será que depois de tanto esforço vou ficar em terra de forma inglória?!). Alcanço o revisor que se mantém de vigia à espera de distraídos.
 Ele pergunta - “Vem mais alguém?” Nas situações limite, é a vontade que tudo supera. Sigo para casa.


1 comentário:

Mário Monteiro disse...

Boas meu caro amigo, só hoje vi o teu blog. Como o tempo passa. Foi fantástico conhecer-te. Forte abraço.