30 outubro 2019

VIA MARIANA 19


 Quem nunca subiu a uma árvore não sabe o tamanho da Floresta



29Jul19 - Braga- Mosteiro do Bom Jesus-Sameiro-Cascata Portela Homem-Soajo 100km





As gotas de água do telheiro da estação de autocarros de Braga caíam e eram um som contínuo com o qual tentava adormecer enrolado sobre uma funda de colchão em cima de um banco. Aguardava que o ponteiro do relógio da estação bate-se as 05h30, hora de chegada do meu parceiro para esta aventura, o Luís Alves. Entre as ripas de madeira dorme-se um pouco melhor que no banco do autocarro durante a viagem. A poucos metros de nós, o céu está ao estilo de uma noite de Outono, com muita neblina e convidativa a um serão de chá e bolachas.

Não tínhamos pressa para sair porque o posto de turismo do Sameiro abriria perto das 10h para nos venderem uma credencial de peregrino. Quando pensamos que temos muito tempo, é durante a subida ao Bom Jesus e do desfrutar das suas áreas e envolventes que percebemos que, o tempo que outrora parecia dilatado, agora consumia-se como um fósforo. Cada espaço até ao Santuário do Sameiro merece ser aproveitado enquanto a subida se faz gradualmente.
À medida que nos vamos aproximando de Vieira do Minho, surgem os primeiros momentos em que as subidas precisam ser executadas a pé (via Augusta). Honestamente julguei que o track de gps se mantivesse à cota e perto da N103. Puro engano. Algures à esquerda, pela N304 entramos no Parque Nacional da Peneda-Gerês. O rio Cávado, sereno, espraia-se bem diante das nossas rodas.




 Neste desvio efetuado à Via Mariana para chegar à Portela da Cascata do Homem e antes de atingirmos a cota 757, o ponto alto do caminho, várias placas alertam para o pagamento de uma taxa. Os 2 vigilantes junto ao posto de controlo mandam-nos seguir. A cadência lenta continua presente e só a escassos quilómetros da cascata é que fluímos a grande velocidade pelo corredor verde que emana em nosso redor.  Aquele pedaço de água retida entre rochas firmes, merece cada quilómetro a mais percorrido. Nesta altura, a preocupação era com o relógio. Sabíamos que o Centro Social de Soajo fechava às 17h e que o esforço para lá chegar iria exigir energia extra. Uma noite sem dormir manifesta-se em todos os indivíduos, independentemente da idade. No nosso caso, já pouco saía em cada respiração.



Vamos para os lados do Xurés, neste território deslizamos velozmente até às termas das Caldas de Lobios. As paredes das casas quase tocam a estrada, sentimos o povo galego que se desvia para passarmos. É pelas suas ruas que cruzamos pequenas aldeias perdidas neste infinito bosque verde.
Seguimos na direção de Lindoso, vamos a um ritmo vivo, a um ritmo que foi efémero e onde, ao olharmos para um café bem perto da barragem, percebemos novamente o nosso estado de exaustão. Desconhecíamos o que estava para vir, mesmo faltando 10 km. Liguei para o Centro e informei que, com quase toda a certeza iríamos chegar depois da hora de fecho do espaço que nos iria acolher. Depois de combinado uma forma de contornar este problema, tornou-se mais fácil ficar parado na esplanada para comer um gelado. Cada caloria foi gasta para chegar ao topo onde estavam os espigueiros altaneiros de Soajo.




30Jul19 – Soajo- Ecovia do Lima – Sistelo (Ecovia do Vez) - Melgaço 87km



Poucos minutos volvidos da nossa saída e estamos num caminho de cascalho. Vamos a descer na esperança de junto ao rio encontrarmos a ecovia. O caminho até à margem é tão bera, numa envolvente tão selvagem, que duvidamos existir algo construído pela mão do homem junto à água. Não está a ser um troço muito explorado, é talvez pouco conhecido ainda, no entanto, nota-se que tem existido manutenção da autarquia de Arcos de Valdevez uma vez que o trajeto se encontra limpo de vegetação.



Uma placa vertical indica o fim da ecovia. À direita, as rochas sobressaem, são elas a matéria do caminho. Vagarosamente empurramos as bicicletas até nos determos uns metros acima pois por momentos a linha do track do gps divergia do trilho que estávamos a palmilhar. As bicicletas ficaram encostadas enquanto recuamos à cota do rio para nos certificarmos que nada, mas mesmo nada nos tinha escapado para lá da vegetação. Junto à água, só avançaríamos empunhando uma catana ou dentro de uma canoa.
Não foi rápida a chegada a Arcos de Valdevez. Sobre a ecovia do Vez fomos avançando ao mesmo tempo que usufruíamos do silêncio que imerge em cada pedaço daquela natureza em estado quase puro e intacto.São quilómetros de passadiços de madeira que contornam braços de água, ladeiam encostas e nos fazem subir e nalguns casos, a descer num espaço pouco largo e que tem de ser partilhado por quem se desloca a pé. É escorregadio, as placas assim avisam para este pormenor muito importante pois em caso de chuva ou humidade, uma queda ali pode significar um valente embate na estrutura que suporta todo o passadiço.
O Luís traz uma bicicleta de gravel equipada com pneus de ciclocrosse, tecnicamente falando. Na gíria do comum cidadão, significa que os pneus são finos e em certas ocasiões neste troço, as rodas entram nas grelhas de drenagem se porventura não se está atento.
A valente subida de pedra amontoada até ao Sistelo quebrou o resto do ímpeto e arrastou-nos para lá da hora a que queríamos ou pensávamos chegar para estarmos confortáveis com os restantes 50km que ainda nos faltavam. Na povoação apenas temos um restaurante aberto, a fila estende-se para lá da soleira da porta, nesta altura o Luís só dizia daqui não saio sem comer.
Ficámos pelas entradas de presunto, pataniscas e azeitonas. Não estávamos em modo turístico. Era urgente tomar uma estratégia para outra fatigante jornada. Não estando a sentir-se muito bem, o meu companheiro de viagem resolveu, já na estrada, seguir o sentido oposto ao meu. Voltou para trás, eu meti os pés nos pedais e girava na direção de Melgaço. Não ia confortável, as subidas neste dia ainda mal tinham começado. Sei que tive de parar num café para tomar fôlego, beber algo, picar qualquer coisa e tentar novamente. Não ligo nada a números, mas sei que em menos de 10kms já tinha mais de 700 metros de acumulado.
Um ciclista abeira-se de mim numa subida tranquilizando-me que em breve seria sempre a descer até Melgaço.É numa bifurcação da estrada que paro numa estação de autocarro para comer algo e vestir um corta-vento. As pernas tremiam, as batidas do coração, senti-as a pulsar cada vez que as pernas latejavam.
Foi um ápice até à Pousada da Juventude. Claro que não gostei que estivesse cheia, que fosse longe do centro, que era preciso vencer algumas subidas e que o telefone - por não estar atualizado -  me levou a percorrer todo o itinerário para nada.
Fui salvo pela Sra Teresa, a dona do alojamento local (casa das Marias), e que presta apoio aos peregrinos. Sentindo que - entre o tempo que mediava o meu telefonema e a duração do percurso para fazer 2 kms-  passaram muitos minutos, ligou-me para dizer que iria buscar-me


- Não se preocupe, estive a comer algo para recuperar. Já sei onde mora e vou a caminho.
- Tenho uma carrinha, deve caber, responde a Teresa.
Cansado mas satisfeito, resisto ao sono para escrever algumas linhas que prevaleçam e me recordem anos mais tarde que tudo passa rápido. São 23h, daqui a pouco preciso estar a pé. Tenho 2 camas no quarto, vai ser uma luta para sair de uma delas.

  31Jul19 –Melgaço-Cuntis 110 km

O vento frio sentia-se na brisa matinal em Melgaço. Pouco após a saída da cidade, ao cruzar a ponte internacional, surge o passeio fluvial do rio Minho. Começa aqui mais um pedaço de céu que convida a pedalar devagar e até a ficar em algum dos muitos recantos que permitem um banho relaxado nestas águas calmas.
Os quilómetros passam, a qualidade do cenário expande. Sobre o caminho dos defuntos, embrenho-me pela floresta, entre silvas e fetos, tenho um pequeno trilho para passar. A pé, com a bicicleta ao lado, quem sofre são as canelas pois é preferível ser esta a parte do meu corpo a ser castigada do que ficar com meia dúzia de espinhos cravados em cada roda. Há momentos - quando o espinho que espreita é um bocado maior -  que é preciso levantar e carregar a bike. Estes procedimentos não impedem que continue a sulcar e a vincar a vegetação contra o solo.


São precisas aproximadamente 5h para calcorrear pouco mais de 20kms. De repente, quando perscruto o horizonte, uma manta verde é tudo o que avisto diante de mim. Fica para trás o Camiño da Raiña e é nas poucas casas da aldeia do Formigueiro que volto a abastecer de água. As generosas fontes são uma constante e delas brotam sempre água cristalina e fresca.
O caminho continua a complicar-se até e bem depois de Fanqueira. Em modo slow-motion vai ficando guardado cada espaço de pedra onde tento que passem as rodas da bicicleta. A deambular há horas por locais remotos e sem ninguém, chego perto da N120 onde aproveito para comer algo. Constato que o fecho da bolsa se abriu, foi-se a comida e as 2 camaras de ar. A mais de 70 kms de Cuntis e com tanto off-road por percorrer, em cada pedalada sentia que estava a jogar à roleta russa. Já não ia descansado. Durante várias horas não iria avistar vivalma nem teria a oportunidade por perguntar se existiria uma loja algures. Lanço o alerta no FB para que alguém descubra um espaço físico numa distância aceitável.
Por incrível que pareça, tenho um amigo de férias em Monção. O João Parracho na sua Honda VFR vai fazer-me um serviço personalizado. Vou-lhe enviando dados com a minha localização. Ao olhar o gps, a pequena aldeia de Forzáns surge como referência e ponto de encontro. Duas horas depois, vejo uma churrascaria na PO-225 e para ser sincero, nada mais precisava. Podia comer ali, por isso, tinha tempo. A distância que faltava para Cuntis, logo se havia de solucionar.
Na esplanada, entre umas tapas e uns copos de cerveja, fui abençoado com a oferta do Parracho. Na posse de  2 novas câmaras, vou aliviado e centrado no caminho. Se elas enchem com a bomba da loja do chinês? Isso agora é outra folha de obra…
Contra todas as expectativas e indicações de quem sem vai juntando no café, sigo para Cuntis e não Pontevedra como sugerido. A minha obstinação ajuda-me a chegar quase às 22h00 a localidade Termal onde pernoitei na pensão Pura.

01Ago19 – Cuntis-Muxia 100 km

Foi mais uma noite mal dormida. Acabei de jantar perto das 23h, esforcei-me para escrever algo, e possivelmente cansado como estava, não adormeci em pleno. Umas horas depois, para sair da cama às 07h não estava nada motivado.
De manhã ao pequeno-almoço como algumas bananas e pão comprado no supermercado ao virar da esquina. Sobre o pão ainda consigo colocar um grande naco de tortilha que havia sobrado do dia anterior ao jantar. No restaurante recomendaram-me uma tortilha pequena cujo diâmetro cobria o interior do prato. Argumentei que iria optar pelo tamanho médio. Não passava a borda do prato mas também não se via. Estava perfeito.

Faço-me ao percurso que percorro lentamente principalmente por existirem muitos ramos e folhas soltas que cobriam toda a superfície. Vou na direção de Pádron, os peregrinos a Caminho de Santiago surgem em pequenos grupos. Passam várias bicicletas, a oferta hoteleira começa a aumentar e o próprio estado dos caminhos melhora. Não é minha intenção seguir para a Catedral hoje. Tenho consciência que acrescento cerca de 40kms ao já extenso valor que tenho planeado. O desvio à via Mariana leva-me para os lados de Negreira, e é já em Brión, uma povoação termal, que fico envolvido por uma densa folhagem de fetos, num troço coberto de cascas e folhas de eucalipto. Felizmente não passo mais de 2km até chegar um pouco mais acima na estrada. Ali mesmo tomei a decisão de deixar o trilho, seguir alcatrão até Ponte Maceira onde entroncaria com o caminho que vem de Herbón. Na altura tinha a certeza que por ser mais movimentado, o estado de conservação seria irrepreensível. Não me enganei.
As horas foram passando e sobre mim instalou-se uma monotonia que afetava a forma como pedalava. Não estava a sentir, a olhar, nem a valorizar o que de belo havia pela frente. Mais do que seria expectável, parava amiúde para tomar algo. Tanto podia ser uma cerveja como um café com leite, não havia regra.
Recomposto por momentos, foquei-me na beleza por detrás de cada maravilha que cruzo e num ápice estou a avistar as águas transparentes da costa de Muxia. Sobre os passadiços de madeira que cobrem as dunas da praia, sinto o cheiro da maresia enquanto sinto inveja de todos aqueles que estão a banhar-se nas águas do Atlântico. Faz vários dias que não têm faltado locais como este para um banho refrescante. Tem-me faltado tempo disponível para usufruir deles. Ao adicionar o PNPG (Parque Natural da Peneda-Gerês) e a ida ao Sistelo, extrapolei imenso a dureza desta rota. Agora que a finalizei, posso dizer que os 2 dias iniciais foram os mais exigentes (talvez por terem sido os mais cicláveis). A quilometragem diária rondava sempre os 100km. Se não era da inclinação que obrigava a andar devagar, era pela vegetação que forçava a andar a pé. Também devagar.
Dito isto, tudo se resumia a estar sentado a pedalar ou lado a lado com a bicicleta. Não tive espaço para intercalar com outras tarefas que fazem parte da viagem. Escrever, ficar onde me sinto bem, tomar vários banhos no rio…

Estou no albergue de Muxia onde tomo uma refeição comunitária preparada por um peregrino alemão. Toda a logística é preparada de véspera porque às 06h45 tenho o autocarro para Santiago e ao meio-dia para Lisboa.
Tudo nesta rota foi idealizado para ser consumido no menor prazo possível e durante a semana para minimizar o impacto familiar. Confesso, há sempre perdas neste processo de partida, mas conquista-se bastante nos reencontros, no renascimento de uma vida nova que se ganha depois de percebermos o que realmente importa.




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