29Jul19 - Braga- Mosteiro do Bom
Jesus-Sameiro-Cascata Portela Homem-Soajo 100km
As gotas de água do telheiro da
estação de autocarros de Braga caíam e eram um som contínuo com o qual tentava
adormecer enrolado sobre uma funda de colchão em cima de um banco. Aguardava
que o ponteiro do relógio da estação bate-se as 05h30, hora de chegada do meu
parceiro para esta aventura, o Luís Alves. Entre as ripas de madeira dorme-se
um pouco melhor que no banco do autocarro durante a viagem. A poucos metros de
nós, o céu está ao estilo de uma noite de Outono, com
muita neblina e convidativa a um serão de chá e bolachas.
Não tínhamos pressa para sair
porque o posto de turismo do Sameiro abriria perto das 10h para nos venderem
uma credencial de peregrino. Quando pensamos que temos muito tempo, é durante a
subida ao Bom Jesus e do desfrutar das suas áreas e envolventes que percebemos
que, o tempo que outrora parecia dilatado, agora consumia-se como um fósforo. Cada
espaço até ao Santuário do Sameiro merece ser aproveitado enquanto a subida se
faz gradualmente.
À medida que nos vamos aproximando
de Vieira do Minho, surgem os primeiros momentos em que as subidas precisam ser
executadas a pé (via Augusta). Honestamente julguei que o track de gps se
mantivesse à cota e perto da N103. Puro engano. Algures à esquerda, pela N304 entramos no Parque Nacional da Peneda-Gerês. O rio Cávado,
sereno, espraia-se bem diante das nossas rodas.
Vamos para os lados do Xurés, neste
território deslizamos velozmente até às termas das Caldas de Lobios. As paredes
das casas quase tocam a estrada, sentimos o povo galego que se desvia para
passarmos. É pelas suas ruas que cruzamos pequenas aldeias perdidas neste infinito
bosque verde.
Seguimos na direção de Lindoso, vamos
a um ritmo vivo, a um ritmo que foi efémero e onde, ao olharmos para um café
bem perto da barragem, percebemos novamente o nosso estado de exaustão. Desconhecíamos
o que estava para vir, mesmo faltando 10 km. Liguei para o Centro e informei
que, com quase toda a certeza iríamos chegar depois da hora de fecho do espaço
que nos iria acolher. Depois de combinado uma forma de contornar este problema,
tornou-se mais fácil ficar parado na esplanada para comer um gelado. Cada
caloria foi gasta para chegar ao topo onde estavam os espigueiros altaneiros de
Soajo.
30Jul19 – Soajo- Ecovia do Lima – Sistelo
(Ecovia do Vez) - Melgaço 87km
Poucos minutos volvidos da nossa
saída e estamos num caminho de cascalho. Vamos a descer na esperança de junto
ao rio encontrarmos a ecovia. O caminho até à margem é tão bera, numa
envolvente tão selvagem, que duvidamos existir algo construído pela mão do
homem junto à água. Não está a ser um troço muito explorado, é talvez pouco
conhecido ainda, no entanto, nota-se que tem existido manutenção da autarquia
de Arcos de Valdevez uma vez que o trajeto se encontra limpo de vegetação.
Uma placa vertical indica o fim da
ecovia. À direita, as rochas sobressaem, são elas a matéria do caminho.
Vagarosamente empurramos as bicicletas até nos determos uns metros acima pois
por momentos a linha do track do gps divergia do trilho que estávamos a
palmilhar. As bicicletas ficaram encostadas enquanto recuamos à cota do rio
para nos certificarmos que nada, mas mesmo nada nos tinha escapado para lá da
vegetação. Junto à água, só avançaríamos empunhando uma catana ou dentro de uma
canoa.
Não foi rápida a chegada a Arcos
de Valdevez. Sobre a ecovia do Vez fomos avançando ao mesmo tempo que
usufruíamos do silêncio que imerge em cada pedaço daquela natureza em estado
quase puro e intacto.São quilómetros de passadiços de madeira que contornam
braços de água, ladeiam encostas e nos fazem subir e nalguns casos, a descer
num espaço pouco largo e que tem de ser partilhado por quem se desloca a pé. É
escorregadio, as placas assim avisam para este pormenor muito importante pois
em caso de chuva ou humidade, uma queda ali pode significar um valente embate
na estrutura que suporta todo o passadiço.
O Luís traz uma bicicleta de gravel
equipada com pneus de ciclocrosse, tecnicamente falando. Na gíria do comum
cidadão, significa que os pneus são finos e em certas ocasiões neste troço, as
rodas entram nas grelhas de drenagem se porventura não se está atento.
A valente subida de pedra
amontoada até ao Sistelo quebrou o resto do ímpeto e arrastou-nos para lá da
hora a que queríamos ou pensávamos chegar para estarmos confortáveis com os
restantes 50km que ainda nos faltavam. Na povoação apenas temos um restaurante
aberto, a fila estende-se para lá da soleira da porta, nesta altura o Luís só
dizia daqui não saio sem comer.
Ficámos pelas entradas de
presunto, pataniscas e azeitonas. Não estávamos em modo turístico. Era urgente
tomar uma estratégia para outra fatigante jornada. Não estando a sentir-se
muito bem, o meu companheiro de viagem resolveu, já na estrada, seguir o
sentido oposto ao meu. Voltou para trás, eu meti os pés nos pedais e girava na
direção de Melgaço. Não ia confortável, as subidas neste dia ainda mal tinham
começado. Sei que tive de parar num café para tomar fôlego, beber algo, picar
qualquer coisa e tentar novamente. Não ligo nada a números, mas sei que em
menos de 10kms já tinha mais de 700 metros de acumulado.
Um ciclista abeira-se de mim numa
subida tranquilizando-me que em breve seria sempre a descer até Melgaço.É numa
bifurcação da estrada que paro numa estação de autocarro para comer algo e
vestir um corta-vento. As pernas tremiam, as batidas do coração, senti-as a
pulsar cada vez que as pernas latejavam.
Foi um ápice até à Pousada da
Juventude. Claro que não gostei que estivesse cheia, que fosse longe do centro,
que era preciso vencer algumas subidas e que o telefone - por não estar
atualizado - me levou a percorrer todo o
itinerário para nada.
Fui salvo pela Sra Teresa, a dona
do alojamento local (casa das Marias), e que presta apoio aos peregrinos. Sentindo
que - entre o tempo que mediava o meu telefonema e a duração do percurso para fazer
2 kms- passaram muitos minutos, ligou-me
para dizer que iria buscar-me
- Não se preocupe, estive a comer
algo para recuperar. Já sei onde mora e vou a caminho.
- Tenho uma carrinha, deve caber,
responde a Teresa.
Cansado mas satisfeito, resisto ao
sono para escrever algumas linhas que prevaleçam e me recordem anos mais tarde
que tudo passa rápido. São 23h, daqui a pouco preciso estar a pé. Tenho 2 camas
no quarto, vai ser uma luta para sair de uma delas.
O vento frio sentia-se na brisa
matinal em Melgaço. Pouco após a saída da cidade, ao cruzar a ponte
internacional, surge o passeio fluvial do rio Minho. Começa aqui mais um pedaço
de céu que convida a pedalar devagar e até a ficar em algum dos muitos recantos
que permitem um banho relaxado nestas águas calmas.
Os quilómetros passam, a qualidade
do cenário expande. Sobre o caminho dos defuntos, embrenho-me pela floresta,
entre silvas e fetos, tenho um pequeno trilho para passar. A pé, com a
bicicleta ao lado, quem sofre são as canelas pois é preferível ser esta a parte
do meu corpo a ser castigada do que ficar com meia dúzia de espinhos cravados
em cada roda. Há momentos - quando o espinho que espreita é um bocado maior - que é preciso levantar e carregar a bike.
Estes procedimentos não impedem que continue a sulcar e a vincar a vegetação
contra o solo.
São precisas aproximadamente 5h
para calcorrear pouco mais de 20kms. De repente, quando perscruto o horizonte,
uma manta verde é tudo o que avisto diante de mim. Fica para trás o Camiño da
Raiña e é nas poucas casas da aldeia do Formigueiro que volto a abastecer de
água. As generosas fontes são uma constante e delas brotam sempre água
cristalina e fresca.
O caminho continua a complicar-se
até e bem depois de Fanqueira. Em modo slow-motion vai ficando guardado cada
espaço de pedra onde tento que passem as rodas da bicicleta. A deambular há
horas por locais remotos e sem ninguém, chego perto da N120 onde aproveito para
comer algo. Constato que o fecho da bolsa se abriu, foi-se a comida e as 2
camaras de ar. A mais de 70 kms de Cuntis e com tanto off-road por percorrer,
em cada pedalada sentia que estava a jogar à roleta russa. Já não ia
descansado. Durante várias horas não iria avistar vivalma nem teria a oportunidade
por perguntar se existiria uma loja algures. Lanço o alerta no FB para que
alguém descubra um espaço físico numa distância aceitável.
Por incrível que pareça, tenho um
amigo de férias em Monção. O João Parracho na sua Honda VFR vai fazer-me um serviço
personalizado. Vou-lhe enviando dados com a minha localização. Ao olhar o gps,
a pequena aldeia de Forzáns surge como referência e ponto de encontro. Duas
horas depois, vejo uma churrascaria na PO-225 e para ser sincero, nada mais
precisava. Podia comer ali, por isso, tinha tempo. A distância que faltava para
Cuntis, logo se havia de solucionar.
Na esplanada, entre umas tapas e uns
copos de cerveja, fui abençoado com a oferta do Parracho. Na posse de 2 novas câmaras, vou aliviado e centrado no
caminho. Se elas enchem com a bomba da loja do chinês? Isso agora é outra folha
de obra…
Contra todas as expectativas e
indicações de quem sem vai juntando no café, sigo para Cuntis e não Pontevedra
como sugerido. A minha obstinação ajuda-me a chegar quase às 22h00 a localidade
Termal onde pernoitei na pensão Pura.
01Ago19 – Cuntis-Muxia 100 km
Foi mais uma noite mal dormida.
Acabei de jantar perto das 23h, esforcei-me para escrever algo, e possivelmente
cansado como estava, não adormeci em pleno. Umas horas depois, para sair da
cama às 07h não estava nada motivado.
De manhã ao pequeno-almoço como
algumas bananas e pão comprado no supermercado ao virar da esquina. Sobre o pão
ainda consigo colocar um grande naco de tortilha que havia sobrado do dia
anterior ao jantar. No restaurante recomendaram-me uma tortilha pequena cujo
diâmetro cobria o interior do prato. Argumentei que iria optar pelo tamanho médio.
Não passava a borda do prato mas também não se via. Estava perfeito.
Faço-me ao percurso que percorro
lentamente principalmente por existirem muitos ramos e folhas soltas que
cobriam toda a superfície. Vou na direção de Pádron, os peregrinos a Caminho de
Santiago surgem em pequenos grupos. Passam várias bicicletas, a oferta
hoteleira começa a aumentar e o próprio estado dos caminhos melhora. Não é
minha intenção seguir para a Catedral hoje. Tenho consciência que acrescento
cerca de 40kms ao já extenso valor que tenho planeado. O desvio à via Mariana
leva-me para os lados de Negreira, e é já em Brión, uma povoação termal, que
fico envolvido por uma densa folhagem de fetos, num troço coberto de cascas e
folhas de eucalipto. Felizmente não passo mais de 2km até chegar um pouco mais
acima na estrada. Ali mesmo tomei a decisão de deixar o trilho, seguir alcatrão
até Ponte Maceira onde entroncaria com o caminho que vem de Herbón. Na altura
tinha a certeza que por ser mais movimentado, o estado de conservação seria
irrepreensível. Não me enganei.
As horas foram passando e sobre
mim instalou-se uma monotonia que afetava a forma como pedalava. Não estava a
sentir, a olhar, nem a valorizar o que de belo havia pela frente. Mais do que
seria expectável, parava amiúde para tomar algo. Tanto podia ser uma cerveja
como um café com leite, não havia regra.
Recomposto por momentos, foquei-me
na beleza por detrás de cada maravilha que cruzo e num ápice estou a avistar as
águas transparentes da costa de Muxia. Sobre os passadiços de madeira que
cobrem as dunas da praia, sinto o cheiro da maresia enquanto sinto inveja de
todos aqueles que estão a banhar-se nas águas do Atlântico. Faz vários dias que
não têm faltado locais como este para um banho refrescante. Tem-me faltado
tempo disponível para usufruir deles. Ao adicionar o PNPG (Parque Natural da Peneda-Gerês)
e a ida ao Sistelo, extrapolei imenso a dureza desta rota. Agora que a
finalizei, posso dizer que os 2 dias iniciais foram os mais exigentes (talvez
por terem sido os mais cicláveis). A quilometragem diária rondava sempre os
100km. Se não era da inclinação que obrigava a andar devagar, era pela
vegetação que forçava a andar a pé. Também devagar.
Dito isto, tudo se resumia a estar
sentado a pedalar ou lado a lado com a bicicleta. Não tive espaço para
intercalar com outras tarefas que fazem parte da viagem. Escrever, ficar onde
me sinto bem, tomar vários banhos no rio…
Estou no albergue de Muxia onde
tomo uma refeição comunitária preparada por um peregrino alemão. Toda a
logística é preparada de véspera porque às 06h45 tenho o autocarro para
Santiago e ao meio-dia para Lisboa.
Tudo nesta rota foi idealizado
para ser consumido no menor prazo possível e durante a semana para minimizar o
impacto familiar. Confesso, há sempre perdas neste processo de partida, mas
conquista-se bastante nos reencontros, no renascimento de uma vida nova que se
ganha depois de percebermos o que realmente importa.
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