“Os homens que vão à procura da nascente de um rio estão simplesmente à procura de algo que falta dentro deles e nunca encontraram."
Dia
27abr2017 Soito-nascente-Vilar Maior
A
aventura começa com a tentativa de colocar 4 bicicletas num minibus que
inevitavelmente esgotou a lotação juntamente com a bagagem dos passageiros. Há
primeira tentativa ficava metade das bicicletas em terra, havia a necessidade
de reorganizar e criar alguma metodologia que permitisse o aproveitamento do
limitado espaço disponível.
Sacos
empilhados, os que saem com os donos primeiro ficam o mais perto da porta. Soa
no ar que há ovos, repolhos e sem lá mais o quê no seu interior. A tática de
sobrepor e ganhar espaço em altura continua com a anuência e muita paciência
dos passageiros que vão permitindo que haja um convívio tão perto com as
bicicletas mal protegidas. Já não têm as rodas nem os selins, não sabemos nem
podemos tirar nada mais.
Já
em viagem, percebemos que a maioria são emigrantes reformados e idosos que
vieram visitar os filhos no fim de semana prolongado. Regressavam agora e
tinham a nossa companhia. A algazarra era total, o Bolacha, o homem da lycra,
simulava vozes como se de um guia se tratasse. Durante as nossas conversas,
recebíamos inputs sobre toda a região que íamos atravessar. Era como se o
minibus fosse um posto de turismo ambulante. Estes bons momentos acabaram por
encurtar o longo percurso até ao Soito.
A
temperatura arrefeceu imenso. O vento gelado sentia-se nas mãos e faces e mesmo
sem termos saído bem cedo da residencial foi necessário recorrer ao casaco
impermeável para proteger o tronco. O dia a pedalar prolongou-se até às 21h.
Foram muitas as situações que propiciaram mais de 7h a dar aos pedais. Para
chegar à nascente do Côa necessitámos de 25 km, quase metade foram com a
bicicleta pela mão.
Já
passava das 11h da manhã quando iniciámos o trajeto oficial. Não se pode dizer
que os caminhos estejam limpos de vegetação, na maioria das vezes há muitas
raízes, silvas e erva-rasteira que aumentam as probabilidades de furar. Fui eu
o contemplado com 2 furos. Se o tempo começava a escassear, ter que parar para
substituir 2 câmaras de ar ainda contribuía para arrastar o dia para lá da hora
de jantar.
O
percurso está bem marcado, são também percetíveis os desvios para a opção btt/equestre.
Continua a ser recomendado o uso do gps porque por vezes não se identifica as
marcas da Grande Rota.
A
casa de Turismo Rural em Vilar Maior fica bem distante da linha de água. Nesta
aldeia não existe qualquer estabelecimento onde seja possível tomar uma
refeição. A solução passa por pararmos cerca de 5 km antes em Badamalos. Já
dentro do emaranhado de ruas empedradas e casas onde predomina a pedra e o
granito, torna-se difícil encontrar o restaurante mesmo com as indicações de 2
habitantes locais. Durante alguns minutos cirandamos por ali na esperança de
avistarmos algo que se destacasse daquela cor predominante que era o cinzento.
A
ementa não permitia divagações gourmet. Só havia uma escolha possível, mesmo
assim pedimos várias travessas. Hoje, no dia em que escrevo estas linhas, e
também naquela noite de abril, fico contente que ninguém quisesse partilhar um
jarro de vinho. Não sei o que aconteceria depois… Pedalar de barriga cheia não
é das melhores sensações, em contrapartida, sabe muito bem pedalar ao
lusco-fusco num ambiente de pura liberdade, sentado no selim a observar um
castelo bem iluminado que está cada vez mais perto.
Dia
28abr2017 Vilar Maior-Almeida- Pinhel
Os
alojamentos em Turismo Rural pautam sempre pela simpatia e pela riqueza dos
seus pequenos-almoços. Obviamente que queijo de ovelha e chouriços misturados
com leite e café chocalham no estômago enquanto se pedala. Sossega-se a mente
sacrificando o corpo, penso.
Continua
a surpreender o vale que nos envolve, em Jardo a GR começa a desviar-se do Côa. Seguimos entre muros com um
lindo tapete verde pelo meio. Andamos nos topos das montanhas e esta é a melhor
maneira de absorver todo o vale inóspito que nos envolve. As pedras são a base
do caminho, não oferecem dificuldades quando descemos para o rio, mas em
sentido inverso torna-se demasiado exigente para nos conseguirmos manter
sentados no selim.
Pedalamos
por estas terras xistosas
enquanto tal nos for possível sobre as margens do Rio Côa. O rio que corre para
o Douro sobre as montanhas do nordeste de Portugal. É mais um dia que surpreende pela beleza da
paisagem e diversidade de cenários que oferece
Fomos abençoados com a limpeza e compactação
do caminho sem imaginarmos que terminaria junto à água e estaria bloqueado por
pedras gigantes. Só aqui a descrição aterradora que fazem desta rota fez algum
sentido. O gps aponta e dá-nos uma direção, no entanto, sem a ajuda das marcas
vermelha e branca algures na rocha, e acho que íamos molhar bem mais que os
pés. Foram alguns metros com a bicicleta pelo ombro e com sorte ao nosso lado
pela mão.
Chegou a hora de escolhermos, seguir para
oeste e mantermo-nos na margem esquerda do Côa ou optar por atravessarmos uma
singular ponte que nos coloca cada vez mais perto de Almeida. Paramos pouco
tempo depois, o Bolacha está atrasado, queixa-se da dificuldade em colocar
mudanças. Chega, entretanto, a pé. Confirmo que tem a calha do desviador
partida e que a corrente por essa razão prende. Encontra-se a relação perfeita
onde a corrente pode correr livremente e assim o Bolacha já pode seguir um
pouco mais rápido evitando os trilhos.
A fortaleza de Almeida é a razão que nos leva
para este. Nesta vila fortificada preparamo-nos para a segunda parte da nossa
odisseia. O caminho é fluído, grandes descidas permitem-nos atingir velocidades
de 60 km/h ajudando-nos a cobrir grande parte do trajeto até desembocarmos na
margem do rio. Tirando a vegetação que cobre os pratos pedaleiros eu diria que
estava numa bonita ciclovia.
Muito antes do extenuante empedrado que nos
transporta para Pinhel, foi preciso tirar os sapatos para transpor o açude que
nos surgiu pela frente. A velocidade da corrente e o piso irregular manchado de
plantas verdes são condições que não oferecem segurança para uma condução
segura em 2 rodas. O risco não cobria a adrenalina nem tampouco havia
necessidade de nos expormos assim ao perigo.
Dia
29abr2017 Pinhel-Cidadelhe-Vila Nova de Foz Côa
A paisagem começa a mudar, a nossa visão
abarca grandes horizontes com desníveis mais abruptos e terras agrestes.
Entrar
no castro de Cidadelhe é voltar à Idade Média. No miradouro, as bicicletas, de cima, entre o Côa e
as rochas que o limitam e obrigam a fluir em desfiladeiro, apercebem-se da
importância do lugar apelidado de calcanhar do mundo. É Património Mundial da
Humanidade, aqui iniciou-se a descoberta do vale sagrado. O tempo congelou nestas paragens, nós meditamos
enquanto descemos vertiginosamente para uma ponte que cruza o rio. Não há outra
forma de passar. Por entre pedras, cavalos garranos, sobreiros centenários e
casas abandonadas progredimos num percurso rápido e deveras agradável que a
reserva da Faia Brava nos oferece.
A
mão humana faz-se sentir nestes cumes trabalhados, obtendo com suor, labor e
engenho o sustento de muitas gerações. As rochas de xisto não
cobrem apenas os caminhos, as encostas deste vale inabitável e esmagador ou o
leito do seu rio. Algures, são muitas as que têm gravuras rupestres, dizem
mesmo os especialistas que ali se encontra o maior museu ao ar livre do
Paleolítico de todo o mundo.
Relembro
agora a notícia que abre os telejornais
no preciso dia que chegamos a VNFC.
As gravuras foram
vandalizadas, alguém se atreveu a desenhar uma bicicleta junto das gravuras com
10 mil anos.
Quem
consegue encontrar palavras para ato tão hediondo?
A
borracha dos pneus não deixa marcas, o suor não corrói, os nossos antepassados
talvez tenham ficado por aqui porque não tinham bicicletas. Ainda bem que
ficaram para nos deixar tão belos painéis de arte. Nós continuamos…
A ousadia não é suficiente para nos
acercarmos das muralhas de Castelo Melhor, olhar para cima é o melhor que
conseguimos. A cada quilómetro, há medida que nos aproximamos da sua foz, faz
tempo que o rio vem alargando fronteiras.
O autocarro parte para Lisboa a meio da
tarde. Conforme o terreno permite e os nossos andamentos assemelham-se a ritmos
de uma prova do género maratona.
Com o Douro aos pés, conquistamos V.N.Foz Côa
sem sofrermos nos ossos as trovoadas e aguaceiros previstos para o dia de hoje.
Claro que não se pode dizer o mesmo da arrojada subida que nos leva ao centro da
cidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário