26 maio 2017

A Grande Rota do Vale do Côa

“Os homens que vão à procura da nascente de um rio estão simplesmente à procura de algo que falta dentro deles e nunca encontraram."


Dia 27abr2017 Soito-nascente-Vilar Maior

A aventura começa com a tentativa de colocar 4 bicicletas num minibus que inevitavelmente esgotou a lotação juntamente com a bagagem dos passageiros. Há primeira tentativa ficava metade das bicicletas em terra, havia a necessidade de reorganizar e criar alguma metodologia que permitisse o aproveitamento do limitado espaço disponível.


Sacos empilhados, os que saem com os donos primeiro ficam o mais perto da porta. Soa no ar que há ovos, repolhos e sem lá mais o quê no seu interior. A tática de sobrepor e ganhar espaço em altura continua com a anuência e muita paciência dos passageiros que vão permitindo que haja um convívio tão perto com as bicicletas mal protegidas. Já não têm as rodas nem os selins, não sabemos nem podemos tirar nada mais.
Já em viagem, percebemos que a maioria são emigrantes reformados e idosos que vieram visitar os filhos no fim de semana prolongado. Regressavam agora e tinham a nossa companhia. A algazarra era total, o Bolacha, o homem da lycra, simulava vozes como se de um guia se tratasse. Durante as nossas conversas, recebíamos inputs sobre toda a região que íamos atravessar. Era como se o minibus fosse um posto de turismo ambulante. Estes bons momentos acabaram por encurtar o longo percurso até ao Soito.
A temperatura arrefeceu imenso. O vento gelado sentia-se nas mãos e faces e mesmo sem termos saído bem cedo da residencial foi necessário recorrer ao casaco impermeável para proteger o tronco. O dia a pedalar prolongou-se até às 21h. Foram muitas as situações que propiciaram mais de 7h a dar aos pedais. Para chegar à nascente do Côa necessitámos de 25 km, quase metade foram com a bicicleta pela mão.


Já passava das 11h da manhã quando iniciámos o trajeto oficial. Não se pode dizer que os caminhos estejam limpos de vegetação, na maioria das vezes há muitas raízes, silvas e erva-rasteira que aumentam as probabilidades de furar. Fui eu o contemplado com 2 furos. Se o tempo começava a escassear, ter que parar para substituir 2 câmaras de ar ainda contribuía para arrastar o dia para lá da hora de jantar.
O percurso está bem marcado, são também percetíveis os desvios para a opção btt/equestre. Continua a ser recomendado o uso do gps porque por vezes não se identifica as marcas da Grande Rota.
A casa de Turismo Rural em Vilar Maior fica bem distante da linha de água. Nesta aldeia não existe qualquer estabelecimento onde seja possível tomar uma refeição. A solução passa por pararmos cerca de 5 km antes em Badamalos. Já dentro do emaranhado de ruas empedradas e casas onde predomina a pedra e o granito, torna-se difícil encontrar o restaurante mesmo com as indicações de 2 habitantes locais. Durante alguns minutos cirandamos por ali na esperança de avistarmos algo que se destacasse daquela cor predominante que era o cinzento.


A ementa não permitia divagações gourmet. Só havia uma escolha possível, mesmo assim pedimos várias travessas. Hoje, no dia em que escrevo estas linhas, e também naquela noite de abril, fico contente que ninguém quisesse partilhar um jarro de vinho. Não sei o que aconteceria depois… Pedalar de barriga cheia não é das melhores sensações, em contrapartida, sabe muito bem pedalar ao lusco-fusco num ambiente de pura liberdade, sentado no selim a observar um castelo bem iluminado que está cada vez mais perto.

Dia 28abr2017 Vilar Maior-Almeida- Pinhel

Os alojamentos em Turismo Rural pautam sempre pela simpatia e pela riqueza dos seus pequenos-almoços. Obviamente que queijo de ovelha e chouriços misturados com leite e café chocalham no estômago enquanto se pedala. Sossega-se a mente sacrificando o corpo, penso.
Continua a surpreender o vale que nos envolve, em Jardo a GR começa a desviar-se do Côa. Seguimos entre muros com um lindo tapete verde pelo meio. Andamos nos topos das montanhas e esta é a melhor maneira de absorver todo o vale inóspito que nos envolve. As pedras são a base do caminho, não oferecem dificuldades quando descemos para o rio, mas em sentido inverso torna-se demasiado exigente para nos conseguirmos manter sentados no selim.


Pedalamos por estas terras xistosas enquanto tal nos for possível sobre as margens do Rio Côa. O rio que corre para o Douro sobre as montanhas do nordeste de Portugal. É mais um dia que surpreende pela beleza da paisagem e diversidade de cenários que oferece
Fomos abençoados com a limpeza e compactação do caminho sem imaginarmos que terminaria junto à água e estaria bloqueado por pedras gigantes. Só aqui a descrição aterradora que fazem desta rota fez algum sentido. O gps aponta e dá-nos uma direção, no entanto, sem a ajuda das marcas vermelha e branca algures na rocha, e acho que íamos molhar bem mais que os pés. Foram alguns metros com a bicicleta pelo ombro e com sorte ao nosso lado pela mão.



Chegou a hora de escolhermos, seguir para oeste e mantermo-nos na margem esquerda do Côa ou optar por atravessarmos uma singular ponte que nos coloca cada vez mais perto de Almeida. Paramos pouco tempo depois, o Bolacha está atrasado, queixa-se da dificuldade em colocar mudanças. Chega, entretanto, a pé. Confirmo que tem a calha do desviador partida e que a corrente por essa razão prende. Encontra-se a relação perfeita onde a corrente pode correr livremente e assim o Bolacha já pode seguir um pouco mais rápido evitando os trilhos.


A fortaleza de Almeida é a razão que nos leva para este. Nesta vila fortificada preparamo-nos para a segunda parte da nossa odisseia. O caminho é fluído, grandes descidas permitem-nos atingir velocidades de 60 km/h ajudando-nos a cobrir grande parte do trajeto até desembocarmos na margem do rio. Tirando a vegetação que cobre os pratos pedaleiros eu diria que estava numa bonita ciclovia.

Muito antes do extenuante empedrado que nos transporta para Pinhel, foi preciso tirar os sapatos para transpor o açude que nos surgiu pela frente. A velocidade da corrente e o piso irregular manchado de plantas verdes são condições que não oferecem segurança para uma condução segura em 2 rodas. O risco não cobria a adrenalina nem tampouco havia necessidade de nos expormos assim ao perigo.

                                                                                                      
                          
Dia 29abr2017 Pinhel-Cidadelhe-Vila Nova de Foz Côa


A paisagem começa a mudar, a nossa visão abarca grandes horizontes com desníveis mais abruptos e terras agrestes.


Entrar no castro de Cidadelhe é voltar à Idade Média. No miradouro, as bicicletas, de cima, entre o Côa e as rochas que o limitam e obrigam a fluir em desfiladeiro, apercebem-se da importância do lugar apelidado de calcanhar do mundo. É Património Mundial da Humanidade, aqui iniciou-se a descoberta do vale sagrado. O tempo congelou nestas paragens, nós meditamos enquanto descemos vertiginosamente para uma ponte que cruza o rio. Não há outra forma de passar. Por entre pedras, cavalos garranos, sobreiros centenários e casas abandonadas progredimos num percurso rápido e deveras agradável que a reserva da Faia Brava nos oferece.


            A mão humana faz-se sentir nestes cumes trabalhados, obtendo com suor, labor e engenho o sustento de muitas gerações. As rochas de xisto não cobrem apenas os caminhos, as encostas deste vale inabitável e esmagador ou o leito do seu rio. Algures, são muitas as que têm gravuras rupestres, dizem mesmo os especialistas que ali se encontra o maior museu ao ar livre do Paleolítico de todo o mundo.
Relembro  agora a notícia que abre os telejornais no preciso dia que chegamos a VNFC.
As gravuras foram vandalizadas, alguém se atreveu a desenhar uma bicicleta junto das gravuras com 10 mil anos.
Quem consegue encontrar palavras para ato tão hediondo?
A borracha dos pneus não deixa marcas, o suor não corrói, os nossos antepassados talvez tenham ficado por aqui porque não tinham bicicletas. Ainda bem que ficaram para nos deixar tão belos painéis de arte. Nós continuamos…



A ousadia não é suficiente para nos acercarmos das muralhas de Castelo Melhor, olhar para cima é o melhor que conseguimos. A cada quilómetro, há medida que nos aproximamos da sua foz, faz tempo que o rio vem alargando fronteiras.
O autocarro parte para Lisboa a meio da tarde. Conforme o terreno permite e os nossos andamentos assemelham-se a ritmos de uma prova do género maratona.

Com o Douro aos pés, conquistamos V.N.Foz Côa sem sofrermos nos ossos as trovoadas e aguaceiros previstos para o dia de hoje. Claro que não se pode dizer o mesmo da arrojada subida que nos leva ao centro da cidade.


Sem comentários: