Seis
anos passaram desde a Transpirenaica e a nostalgia de sentir o apelo da
montanha vinha corroendo o meu cérebro. Além disso, sempre quis saber como era
o cenário do outro lado. Nasce assim a ideia de cruzar a cordilheira dos
Pirenéus pela vertente francesa, pelo lado oriental.
Aeroporto 24Jun16 – Estou com o Pedro Capelinha no
aeroporto de Lisboa. É mais uma viagem com bicicletas mas desta vez o problema
não estava no excesso de peso da bagagem. A minha caixa de cartão tinha uma
dimensão gigantesca. Lá dentro cabia uma bicicleta completamente montada e
quase tudo o que mais necessitava.
A
fita adesiva estava colada em todas as direções e em quase todos os espaços da
caixa, era uma forma de reforçar e impedir que o cartão se rasgasse pois bem
sei a forma como o pessoal do ground-force despacha a bicicleta.
-
STOPPP!!! Essa caixa tem de passar na máquina do RX do guichet de bagagem
especial e nem é preciso ter olho de engenheiro para perceber que não irá
entrar. Num ápice, inverti todo o processo para retirar toda a fita adesiva e
adelgaçar a caixa até à medida aprovada.
O
Baleia e o Nunes vão fazer esta aventura connosco mais saíram mais cedo do
aeroporto porque enviaram as bicicletas por uma transportadora e precisavam de
chegar dentro do horário de expediente para levantar a mercadoria.
O
ponto de encontro marcado para as 01h00 na estação de Barcelona-Saints foi
anulado. Esta parelha não foi bafejada com a estrela da boa sorte. A corrida de
táxi compensou o atraso do avião aquando da chegada a Barcelona mas como era
dia de “fiesta” em Espanha, tudo estava encerrado.
Não
há conforto para dormir num terminal de aeroporto mas com esteira, saco-cama e
um local pouco iluminado pode-se conseguir umas horas sossegadas.
É
bem cedo, nas primeiras ligações da manhã, entre transferes de terminais e
ligações de comboio que viajo com o Pedro até ao outro lado da fronteira em
Cérbere, França. À memória chega-me um parágrafo do Gonçalo Cadilhe que justifica
na perfeição esta minha opção de não dormirmos em Barcelona como turistas.
Arranquei de madrugada, porquê de
madrugada? Tinha logo se ser cedo? Parece que as grandes partidas, as viagens
épicas, as epopeias precisam de começar com o nascer do sol, talvez para
lembrar os mais dorminhocos que uma viagem é uma coisa muito séria
A
mole imponente dos Pirenéus está a minha frente. Este bastião, esta fronteira
natural que se ergue de este a oeste ainda não sabe que, quem a cruza encontra
uma forma de descobrir as dimensões humanas.
E1 – Cerbere - Argeles
sur Mer - Ceret 25Jun16
Não
há neste troço muita história para contar. O mar está sempre ao nosso lado, o
vento não ajuda e a noite sem dormir também não. Esta deve ser, provavelmente,
a razão da ausência de elementos que coloquem no papel esta distância que
parece infinita.
Dificilmente
uma travessia começa logo a surpreender. Esta ligação seria a que nos levaria
bem para a base dos Pirenéus enquanto mantínhamos o contacto telefónico com os
nossos amigos que vinham a toda a velocidade ao nosso encontro.
E2 – Ceret-Sournia
Já estamos
os 4 juntos. Sair cedo, ao nascer do sol, é uma condição que se exige a quem
deseja executar mais que uma mão cheia de quilómetros. Não temos nenhuma poção
mágica para além da muita massa que cada um carrega (mais tarde vim a descobrir
que a outra parelha traz 2 embalagens de massa instantânea para todos os dias).
Vinça
era o nosso destino. De antemão sabia que existiam troços obrigatórios para
serem feitos a pé (podiam chegar às 3h de duração). O trabalho de casa feito no
Google Earth ajudaria, quando possível e sem perder pontos de interesse, que
pedalássemos o tempo quase todo. Para mim, pedalar é andar de uma forma
diferente. Não existe alternativa capaz de igualar a beleza deste movimento.
É
domingo, sabemos que tudo vai estar fechado. Sabemos também que os primeiros 4
ciclistas a chegar ao camping, não pagam. Horas mais tarde, já no parque,
constatámos que era publicidade enganosa. À sombra de inúmeras árvores,
começámos a tirar o material dos alforges, tínhamos conhecido um ciclista
espanhol que tinha uma característica muito particular, não parava de falar.
Estivesse a pedalar, ou não.
Passam
poucos minutos do meio-dia, é cedo, ao nosso lado temos um bonito lago para apreciar
o resto da tarde. O único problema era que o faríamos de barriga vazia. Até ali
não tinha havido pontos de abastecimento e também não haveria nas próximas
dezenas de quilómetros, no entanto, estarmos parados não é bem o nosso forte.
Quantas
vezes não se encontra o que se procura e se encontra o que não estamos à
espera?!!!
Há
flores por todo o lado, há vasos e estátuas espalhadas pelo terreno. Lê-se num
portão a palavra Non-Stop e, elevado um metro acima da porta, a palavra
frutaria. Espreitamos, está no nosso caminho. Lá dentro há quanto baste de
alimentos para nos fornecer uma bela refeição sem ser frugal ou vegetariana.
Durante
a digestão do belo frango assado comuniquei que iríamos optar pela alternativa
por Marcevol mas que esta ia diretamente para cima durante muito tempo. A
subida era forte o suficiente para nos separar aos 4. O som de tempestade,
típica nos Pirenéus ao final da tarde, começa a dar sinal. Chove, chove mais
ainda. O ranger da minha roda traseira já me acompanha há várias horas. Cada
vez que paro esqueço-me de a verificar. Este som não augura nada de bom, quase
nunca o ouvi mas as minhas suspeitas revelam-se. É um raio partido.
Já
disse que continuava a chover? Vou devagar para não provocar mais danos até que
encontro os meus companheiros abrigados dentro de um pequeno refúgio construído
em pedra.
As birras
geológicas dos Pirenéus abrigam um clima instável. Tão depressa podemos estar a
ser acariciados ou sepultados sob um sol inclemente, como no minuto seguinte, a
tempestade transformar aquele ambiente num local duro e inóspito.
Percebo
que afinal são 2 raios partidos e que consertar a roda era a minha prioridade
máxima. Bebemos café enquanto esperamos uma aberta no tempo que nos permita sair
em segurança montanha abaixo. Após a peculiar vila de Campoussy sucede Sornia,
o nosso ponto de paragem.
E3 – Sournia-Axat- Quirbajou
Era
bom que o vendaval que sentimos na noite anterior tivesse acontecido só enquanto
estávamos nas tendas pois hoje tínhamos pela frente uma verdadeira etapa de
montanha. Sempre a baixa velocidade mas em alta rotação, por muito que escreva,
as palavras são impotentes e nós ciclistas somos minúsculos quando nos deparamos
com muros de pedra desta envergadura.
Gosto
de observar a disparidade de tamanhos enquanto estou sentado no selim da minha
bicicleta.
Longas
extensões de bosques cerrados e verdejantes sucediam-se desde a meia encosta até
aos topos da montanha. Os single-tracks deliciavam-nos e as paragens só
aconteciam para filmar ou tirar fotografias.
O
vento forte manteve-se toda a manhã. Cerca das 15h, já em Vinça e com as lojas
abertas, tivemos o nosso brunch. Até então, a parelha constituída pelo Nunes e
Baleia só tinha comido géis e barras.
Nesta
localidade estávamos dentro do planeado para o 3º dia, ainda assim, por decisão
unânime e com os alforges a transbordar, fomos um pouco mais além. Da cota do
rio fomos à cota de mais um cume para ter o privilégio de pedalar num plateau
cujo cenário se assemelha aos dentes de um serrote.
A
nossa preocupação por agora passa por encontrar um espaço onde pregar estacas.
Vários rolos de feno são a parede que oculta a nossa paragem em um lugar dos
Pirenéus.
E4 Quirbajou - Monteferrier
Alguns
minutos após o nascer do sol ainda a neblina não tinha assentado. O orvalho
cobria tudo como uma manta. Sem água para o café, foi um acordar lento.
Espalhado sobre a erva seca e rasteira, havia tachos, copos e lixo para
carregar.
As
duas ou três casas que formavam a povoação estavam em linha de vista. Sabíamos
onde estava a torneira da fonte e foi lá que, já com água, fizemos o nosso
café, lavámos a loiça e os dentes.
Grande
parte do nosso périplo de hoje assentava sobre a GR-107 no sentido do caminho
cátaro até Montségur. O highlight foi inevitavelmente o desfiladeiro de Gorges
de la Frau com os seus abruptos desfiladeiros a erguerem-se bem para lá das
nossas cabeças. Predomina o verde, os sons da água a correr e o chilrear dos
pássaros completam o cenário que ainda dura longos minutos pelos túneis
luxuriantes de vegetação.
Estes
pináculos em nosso redor só podiam ser escalados ou então contornados, as
curvas de nível do mapa topográfico do GPS anunciavam um verdadeiro calvário
para os próximos quilómetros. Foi, sem exagero, uma via-sacra para todos nós. A
inclinação e a lama eram bíblicas, a bicicleta não era empurrada mas sim puxada
e arrastada, avançando metro a metro acompanhada de fortes momentos de
arritmia. Ofegante, parava para controlar o ar que saía forte entre a diástole
e a sístole enquanto revezava o braço que movia a bicicleta. O meu coração parecia
bailar como canas ao vento.
Várias
horas passaram até avistarmos o bonito e altaneiro castelo de Montségur. Pelo
interior de túneis de vegetação avançamos um pouco mais até ao camping em Monteferrier.
Foi aqui que com o poder da negociação em várias línguas – as palavras em
francês são parcas - para conseguir convencer o gentleman James a cozinhar um
menu 50% abaixo do valor de ementa.
E5 Monteferrier – Foix
A
lama colava-nos as rodas ao chão durante os primeiros quilómetros e quase nos
fez inverter o sentido da marcha para descermos até uma estrada de alcatrão e
seguir uma alternativa mais cómoda e limpa. Aproximamo-nos para tomarmos uma
decisão em conjunto. Foi uma boa opção persistir em subir. Nestas montanhas não
existe saturação de cores, o verde é a cor dominante e pouco mais é preciso acrescentar
à beleza que nos envolve.
Quando
finalmente chegamos ao topo, podemos, de cima, olhar para todo o horizonte das
terras Cátaras onde em tempos viveram os Bons Hommes em busca da perfeição
espiritual.
A
vila medieval de Foix, seteada junto ao rio, foi um bom ponto de paragem para
uma etapa curta (30kms) mas que consumiu 6h do nosso dia. Pernoitamos no
albergue Leo, o preço era justo para obtermos mais tempo livre e o conforto de
uma cama. O saguão do edifício serviu de lugar para as bicicletas, cozinhar e
estendal.
E6 Foix-Massat
Tanta
terra selvagem sedenta de ser percorrida bem à minha frente. Não consigo viver
sem efeito enquanto a minha alma grita pela montanha. O que são, ou fazem, de
diferente, as minhas pedaladas para o mundo? Ele continua a girar - penso.
Pois, eu também, e é aqui que reside a minha liberdade e felicidade.
A
inclinação aceitável dos caminhos de hoje ajudou-nos a vencer mais de 20 quilómetros
até ao topo em Roc Blanc (21542 m) onde nos sentámos para o nosso momento
habitual de café e bolachas. A intenção era que a cortina de neblina abrisse e
mostrasse todos os cumes que nos cercavam. Queríamos conquistar aquele spot! Ali
não colocaríamos a bandeira portuguesa mas com certeza que as fotografias
espelhariam a audácia de logo a seguir palmilharmos um trilho a descer com
quase 30% de inclinação.
A
cor verde não se esgota por estes lados. As nuvens estão carregadas, pinga repetidamente,
as terras estão pesadas, no entanto, dá gosto rolar a alta velocidade neste
ambiente que parece o parque jurássico
É no
camping municipal Le Pouech da bela vila medieval de Massat que montamos tenda
e fazemos o inseparável churrasco acompanhado das inerentes garrafas de vinho. O
nosso dia-a-dia podia ser isto. Voltar a sentir o lado simples da vida.
E7 Massat-Castillon en Couserans
Há
locais envoltos em mistério e que nos deixam a pensar qual será a razão para
encontrar 2 casas comunitárias a abarrotar de seres humanos alternativos a
fumar ganzas e todos com um cheiro a besta que se sente à distância. Em Massat
ficou o enigma.
Os
caminhos florestais continuam a dominar e é com uma vertiginosa descida que nos
sentimos num outro espaço devido à diferença que observamos em nosso redor. Cruzamos
Oust e Seix (já sinto saudades do que vi), pela frente, a GR-10 leva-nos por um
colossal desfiladeiro que vai penetrando no coração dos gigantes de pedra. A
pé, sobre pastos verdes, tivemos que recrutar todos os nossos músculos para não
sentir as forças a faltarem em determinados momentos. “Step by step” galgámos o
dorso à montanha pois jamais perdemos esta eterna energia que nos impulsiona,
que nos queima os músculos e que nos impede de estarmos parados. Com as rodas bem firmes no chão
avançamos como se já nada pudesse parar este movimento.
Num
abrigo de madeira, repousamos enquanto esperamos pelo Capelinha. Lá fora,
improviso um estendal para colocar a camisola encharcada que pingava suor. Foi
uma luta de titãs, numa palavra, foi dantesco. Felizmente a estrada de alcatrão
estava a escassos metros de nós. Aqui, as bicicletas carregadas embalam para lá
dos limites decentes de velocidade a que devíamos descer. A adrenalina
corre-nos nas veias, cada vez que abrando penso o que acabará primeiro, os
discos ou as pastilhas de travão?
Na
minha cabeça ecoa: solta o travão. Solta, solta… Deixa ir. Aprecia o que está
para vir…
De cima
só vemos o negro dos telhados, aproxima-se mais uma povoação Pirenaica misteriosa,
Castillon em Couserans.
E8 Castillon en
Couserans-St Bertrand de Comminges.
Quem
pode recusar um café bem quentinho logo ao acordar? Ainda nem a cara tinha
lavado e já o responsável do camping me estava a perguntar se queria café. Também
queria saber se pretendíamos secar a roupa, tinha visto o estendal cheio de
lycras e sabia pela noite chuvosa que as peças estavam mais molhadas que
aquando da sua lavagem. Há pessoas que entendem bem o que é isto de viajar com
bicicleta e alforges.
Saímos
tarde para uma etapa que se antevia dura. Choveu todo o dia, o slalom era
constante pelos single-tracks cobertos de lama. A bicicleta ganhava vida
própria, só era necessário manter o equilíbrio.
Trilhamos
parte da Route de Cols, para trás fica o conhecido Portet D´Aspet que é transposto
por inúmeros ciclistas e motociclistas. Continuadamente surgem um conjunto de 2
ou 3 casas, seja qual for a dimensão do lugar, não se vê vivalma.
Nós
insistimos para a frente, imundos, o óleo não fica na corrente mas as nossas
rodas continuam a girar numa sucessão de belas paisagens que parecem nunca
esgotar de nos espantar.
E9 St Bertrand de Comminges-Bagnères de Bigorre
Nem
sempre os trilhos que nos levam ao topo são os mais adequados para uma
bicicleta carregada. Onde não existem opções para transpor algumas linhas de altura,
torna-se necessário empurrar. Mesmo suados, temos apreciado bem as enormes
descidas que serpenteiam as encostas destas montanhas.
A
profundidade do vale estende-se bem longe à nossa frente. Um parafuso partido
num suporte de alforges ditou uma paragem forçada. O arame farpado da vedação
foi uma das soluções para manter o suporte preso ao espigão de selim.
Parados,
a distância não muda. A “avozinha” era a pedaleira favorita que lentamente nos
fazia avançar. Tão tarde chegámos que nem a recepção do camping estava aberta.
Faltava pouco para o pôr-do-sol e nós com uma enxurrada de tarefas para
executar.
Depois
desta etapa merecíamos um mimo, quem sabe uma refeição bem guarnecida já que
não o fazemos há vários dias. Acompanhámos a massa com água. O bom destas
lições de sentirmos a falta de tanto conforto é que, quando voltarmos, seremos
com certeza mais felizes pois a abundância é algo que reina no local onde
habitamos.
E10 Bagnères de Bigorre-Argelès Gazost
Bagnères-de-Bigorre
é ponto de passagem do Tour de France. Assim que saímos do camping, são muitos
os ciclistas que connosco partilham a estrada. A nossa ideia era seguir para o
Col do Tourmalet, havia como alternativa seguir por Lourdes, mas é no topo da
montanha, bem perto do céu, que está a nossa fé.
É
frustrante olharmos para uma placa que indica apenas 10kms e pensarmos, falta
2h. Para trás ficam os outros quilómetros, muitas horas e uma camisola de lycra
que já ensopou e secou várias vezes.
Acima
dos 2000 mts, ainda sem folego, no col do Tourmalet sucedem-se um corrupio de
carros, pessoas e bicicletas que entopem a única estrada que cruza a montanha.
Sei para onde vamos, sei também que iremos descer imenso e que o disco da
frente está muito fino e as pastilhas de travão gastas. Com esta preocupação
não consigo falar dos 50 tons de cinzento do céu nesta tarde nem da velocidade
que atingimos ao rolar em fila indiana para chegarmos a Argelès Gazost. Este punhado
de quilómetros rendeu cada gota de suor e um novo conjunto de travagem
adquirido numa loja de bicicletas.
Chove
copiosamente, permanecemos imóveis sob a copa de uma árvore no parque de
campismo de 5*.Não queremos pagar o valor exorbitante que nos pedem, à nossa
volta, as pessoas em biquíni e com boias fogem da água que cai lá de cima.
Sinto uma depressão domingueira em que me apetece ir para a cozinha, ligar o
forno e fazer um bolo.
Julgo
que todos estamos a sentir que o ímpeto não é o mais elevado e por isso
partimos para procurar novo refúgio. O camping seguinte tem o telheiro do
palheiro e um escritório onde só é preciso abrir os saco-cama.
E11 Argeles Gazost-Laruns-Bedous (Route des Cols)
Hoje
temos dose tripla de Cols. Aquecemos pelo Col do Soul, exasperamos pelo Col
D´Aubisque (cujo caminho foi recortado pela montanha) e continuando devagar, chegamos
ao Col Marie Blanque. Um manto de neblina impossibilita-nos de desfrutar os
gigantes de pedra que constituem este maciço do Pirenéus Atlânticos.
Atingimos
velocidades verdadeiramente perigosas na estrada que nos leva para terrenos
mais baixos. São os telhados negros de Laruns a anunciar que a partir deste
ponto um novo prémio de montanha começará.
Tudo
fechado. “Rien de rien” é a palavra certa para o que não existe nas povoações
que cruzamos. A fraqueza instala-se, torna-se vital localizar um ponto de água
para que façamos uma paragem estratégica, montemos o camping gaz e cozinhemos
aquilo que cada parelha traz consigo.
O
meu companheiro tem sopa, apple strudel e café, a outra equipa carrega desde o
primeiro dia vários pacotes de massa instantânea. Vamos no 11º dia e ainda
conseguem cozer al dente, esparguete e tagliatelli carbonara. Tudo feito em
mais um banco do jardim num qualquer lugar perdido nos Pirenéus.
A
cartografia do GPS não engana, vamos para mais uma forte subida, mas desta vez
levamos os depósitos de glicogénio atestados. Que vale magnífico antecede o Col
Marie Blanque. Uso exactamente o mesmo adjectivo para ilustrar o vale D´Aspe pois
se tivesse de acrescentar outra palavra não saberia escolher. Optem por
gigantesco, soberbo, magnificiente…
E12 Bedous-Licq Atherey
Quando
falei ao grupo que o dia de hoje ia ser maioritariamente estrada, não referi um
pormenor importante. A travessia não tinha dias fáceis, as altitudes dos Cols
de hoje não eram desmedidas mas tinham pendentes capazes de nos colar a roda à
estrada. Nos meus apontamentos, tinha como notas importantes ser uma etapa solitária,
não ter pontos de abastecimento e o local de destino ser escasso na oferta de
serviços. Foi necessário irmos abastecer na localidade seguinte bem fora da
nossa rota.
Enquanto
tomávamos o pequeno-almoço numa mesa que montámos debaixo do telheiro do clube
de rugby de Bedous, decidimos, por precaução, levar mantimentos montanha acima.
Ao nosso nível só mesmo mais montanhas, as nuvens pairavam por ali a tapar-nos
a vista que tanto merecíamos.
O
nome Calamity Jane Saloon soa bem, especialmente se for um camping com acesso
privado ao rio com água fresquinha, boa para um banho de crioterapia.
E13 Licq Atherey-St Jean Pied de Port
Mais
uma bela lição de humildade que a bicicleta nos ofereceu hoje. Os 8 quilómetros
que nos separavam do Col de Bagargi - tirando os troços em que tivemos de puxar
a bicicleta - foram provavelmente os quilómetros cicláveis mais difíceis que
nos surgiram até agora pela frente. As pendentes chegavam aos 13%, as escarpas
cobertas de vegetação rasteira de nada servia contra o feroz calor que parecia
aumentar a cada curva e contracurva.
É
nos Chalets de Iraty que temos o nosso momento de café e bolachas. A água está
ao lume e as camisolas estão penduradas a secar. Começam os grandes horizontes
e o caminho que cruza as cristas permite que a nossa visão abrace cenários
titânicos. Oiço comentar que já nem vale a pena tirar fotografias porque é tudo
tão idílico que não se consegue escolher.
Estamos
longe das muralhas de S.Jean Pied de Port quando nos surge um dos pontos mais
bonitos da travessia. Uma incrível descida que nos faz baixar 900mts de
desnível em 11kms. Aquela gravilha junto das curvas em cotovelo ainda hoje me
faz arrepiar.
A
pele de galinha continua quando cruzamos as portas da vila, estas pedras e o ar
que aqui se respira é familiar a quem já pisou este local por diversas vezes.
E14 S.Jean-Ainhoa-Hendaya-Irun
Ao
contrário da aventura que está prestes a terminar, o dia de hoje parecia não
ter fim. Resumindo, pois estas horas davam conteúdo para encher todas as páginas
que escrevi até aqui.
Perdemos o Sud-Express, os bilhetes para o dia
seguinte custaram quase 400€ e o albergue estava fechado há vários meses.
É 6f
e ainda temos previsto 2 etapas até chegarmos a Irún para ingressar no Sud- Express
no dia seguinte.
Não
era só nas “terras altas” que o nevoeiro e a humidade eram intensos. No troço
da GR-10 - um belo single-track entre legiões de fetos que cobriam toda a encosta
- caía uma chuva miudinha. Não incomodava, mas obviamente que tornava mais perigosa
a passagem por sulcos tão pronunciados com pedras escorregadias.
Antes
de descermos a via-sacra para Ainhoa, surge um cenário sinistro digno de um
filme de Hitchcock. Um cemitério. Cristo cruxificado lado a lado com as 2
personagens da história bíblica, as cruzes eram enormes e todas as pedras
tinham símbolos gravados. Tudo banhado por gotículas de água e um manto denso.
A etapa
tinha corrido bem, remanesciam muitas horas de luz pela frente. Surge então a
ideia de apanharmos o comboio hoje. Num verdadeiro contra-relógio, seguimos em
linha estrada fora.
Desde
Hendaya carrego uma caixa de cartão para bicicleta. Ocupo quase meia faixa de
rodagem, atrás de mim seguem os meus amigos a sinalizarem o movimento. É em Irún
que embalamos as bicicletas quando nos dizem, a 5min. do comboio partir, que este
estava completo
Incrédulos,
vamos à bilheteira para assegurarmos reserva para o dia seguinte. Engoli em
seco quando me apresenta o preço para um camarote. Pago e vamos todos beber uma
cerveja para descontrair. Algo não bate certo, o preço do pack família para 4
lugares não é este valor. Novamente na bilheteira explicamos, reiteramos o que
é anunciado no site da Refer/Renfe sobre o valor do camarote que rondaria os
250 €.
Resolvida
esta questão, passámos á fase seguinte. Onde dormir? O albergue da juventude
estava fechado há vários meses. Fizemos vários telefonemas, visitámos várias
pensões, mas só às 23h acertámos na pensão/restaurante.
Deambulamos
por Irún, comemos churros e chocolate quente, bebemos vinho com gasosa à
refeição, mas estamos na estação bem antes da hora de partida do Sud-Express.
Não queremos sobressaltos, basta-nos aqueles em que o trem irá pular até chegar
ao fim da linha.
O
Paulo fica no Oriente, o Pedro e eu seguimos para Santa-Apolónia onde
desmanchamos caixas e montamos as bicicletas. Ele vai para Massamá a pedalar
(diz-me que é para “desmoer”) e eu só tenho coragem para ir até ao Cais do
Sodré.
P.S – Este é o comboio que pára
em todas as estações. Vou quase sempre a olhar para lá das janelas e é em Algés
que vejo a bicicleta do Pedro passar por mim. O homem ia mesmo com vontade de chegar
a casa…
Epílogo
Podia
plagiar Fernando Pessoa “O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a
Lisboa, mas não a uma conclusão”.
Não
sou poeta. Como ciclista, penso: o que são 900 quilómetros para o grande mundo em
que vivemos? Nada, certamente. Sem ser um número de proporções cósmicas ou divinas,
quando percorridos neste maciço montanhoso com o auxílio de uma bicicleta e
muito esforço humano, coloca-me em perspectiva.
Somos seres minúsculos
ou gigantes capazes de transpor qualquer obstáculo?
2 comentários:
Para quando um livro com todas as aventuras ?
Parabéns pelo relato. Até fico cansado só de imaginar as dificuldades relatadas.
Boas pedaladas
daraopedal
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