Um lugar para a(ventura) em Terra de Gigantes
En
un lugar de La Mancha… começou assim Cervantes o primeiro romance
da história da literatura.
Cada
um é artificie da sua própria ventura, escreveu ele. Por todo o
mundo existem muitos desafios que alguém organiza e nos mostra o caminho a
seguir. Para mim, o “sentimento de segurança” que oferecem assemelha-se a
sentir-me como um hamster na gaiola. Eu decido onde quero ir: esquerda ou
direita, sigo em frente ou fico parado e siderado a contemplar o horizonte?
Todos os lugares por onde
passar farão parte da minha história, a maioria deles foram escolhidos pela
enorme curiosidade que em mim despertaram
quando sobre eles li ou vi.Talvez a absorção de tanta literatura de
viagem, conhecer outras paragens e viver noutro ritmo me tenha embriagado ao
ponto de sentir sede cada vez que a minha imaginação passa do trote ao
cavalgar.
La Mancha é grande e existe,
pode estar longe do mar e da montanha, mas é sobre esta terra e este céu que
anseio seguir as pisadas de D.Quixote substituindo o Rocinante por uma
bicicleta de montanha.Não me quero preocupar com o tempo investido nem com a quantidade
de quilómetros percorridos, continuo a gostar de ir tirar fotografias aos
locais aonde me levou a imaginação.
29Ago15
-
Toledo
Toledo é a capital da Comunidade de Castilla - La Mancha
e é conhecida como a cidade imperial.
Toledo, um bom ponto de partida…
Ainda que seja grande o espectáculo em torno das imagens do D.Quixote
e S.Pança no impressionante contraste arquitetónico das ruas e
monumentos de Toledo, do alto das suas muralhas, não se avistam os famosos
moinhos.O traçado do casco antigo é um autêntico labirinto, feitos em
bicicleta, são caminhos que nunca esquecerei.
O calor assentou sobre a cidade
como uma manta.Tudo leva a crer que os próximos dias de aventura sejam abafados
mas ao mesmo tempo luminosos.
Por agora, no Paseo del
Miradero, juntamente com dezenas de turistas assisto ao jogo de luzes que o
por-do-sol espraia sobre tons bege, tons castanhos, a cor terra que dissimula
os edifícios construídos pelo homem com a restante natureza envolvente.
Por agora, alheio aos
turistas, olho o rio Tejo e sorrio. Sei onde desagua, tenho o privilégio de morar
perto, conheço o seu cheiro, é-me familiar.
30Ago15
– Consuegra
Uma linha de moinhos, mais
de dez, e cada um com o seu nome, ladeia o castelo de Consuegra. No topo desta
colina os horizontes e o vento são generosos com quem aqui chega. Nem todos se
sentem viajantes a cruzar o território de La Mancha, esse bónus, esse ponto
extra, obtido pelo esforço humano em querer chegar mais alto, fica ao critério
de cada um.
Observo a terra seca sem
água. As parcelas de terreno bem definidas denotam o cuidado que os habitantes
locais têm para cultivar o melhor açafrão do mundo.
31Ago15
– Daimiel – En un lugar de La Mancha
Hoje comecei a pedalada 2
horas mais tarde que o habitual, o dia ficou mais curto e a iminência de
trovoadas e chuvas fortes ditou que hoje colocasse a tenda num qualquer lugar
de La Mancha entre Campo Criptana e El Toboso
Os caminhos são rolantes,
têm alguma pedra mas ensopam à mínima carga de água. É difícil habituar-me à
horizontalidade da paisagem manchega.
De tempos a tempos, ainda longe, vêem-se
“gigantes”. Os moinhos são sem dúvida os ícones desta aventura, as suas
silhuetas não deixam ninguém indiferente.
Ao lado deles perscruto o horizonte, a
terra parece uma manta de retalhos, penso então como o nome La Mancha assenta
tão bem nesta região.
Desço vertiginosamente pelo
dorso da colina de Alcázar de San Juan, este é um dos momentos que dão crédito
a estas viagens e me ajudam a apagar as palavras que ecoam no meu cérebro isto é monótono, é sempre igual. Tudo
isto acontece porque por vezes abro o alçapão da memória, lá dentro, experiências
únicas e irrepetíveis saltitam inquietas como bolas de ping-pong. Regresso ao
presente, ao tempo onde devo estar, se aqui cheguei e ainda pedalo com gosto,
então amanhã já sei o que vou pedir como desejo de aniversário.
01Set15
En un lugar de La Mancha- El Toboso-Mota del Cuervo-Belmonte-VillaRobledo- En
un lugar de La Mancha (cujas coordenadas não quero revelar)- 103kms
Esta noite dormi sob
“telhado de poliéster” e às 3 horas da manhã o barulho era ensurdecedor. Não
pedi chuva, não pedi uma tromba de água que me obrigou a revolver a terra em
redor da tenda. O sulco, passou a fosso.
Abro os olhos (novamente,
mas mais tarde) e estou um ano mais velho. A luz da manhã mostra o miradouro
maravilhoso onde preguei estacas e repousei a bicicleta cansada. À minha frente
a planície manchega, o meu desejo está a realizar-se.
Chego cedo a El Toboso, vila
natal de Dulcineia, a apaixonada do herói Cervantino. A praça está solitária,
as portas estão fechadas, as janelas estão fechadas. São os monumentos e as ruas (com nomes de
personagens) que revelam parte da imortal novela de Cervantes.
Em todos os pueblos cumpro o
ritual de encher as garrafas de água. O sol ainda não vai alto mas já se
percebe que vai ser um dia com muita transpiração.
Cansado de tanto ziguezague
pela terra arada e de vinhedo e tenho uma miragem. Sigo em direção ao castelo
de Belmonte quando, à minha direita,7 moinhos lançam o seu magnetismo ao meu
atrelado (o quadro de titânio nem se mexia). Confirmei no gps a existência da
localidade de Mota del Cuervo e resolvi desviar até lá.
Parar junto das muralhas do
castelo de Belmonte (um dos mais bem conservados castelos medievais da Europa)
foi a melhor forma de ter sombra antes de continuar para Villarobledo. A matriz
dos caminhos continua muito igual, felizmente hoje tenho a companhia do Pedro
Capelinha que tem hora marcada de chegada às18h na estação de comboios.
O preço do quarto de hotel
nesta grande cidade era aceitável. O Pedro chega e diz-me que traz o nosso
jantar de Portugal, respondo-lhe que ainda tenho a tenda desmanchada em cima do
atrelado e que, acrescentando uma garrafa de vinho, queijo manchego e um pedaço
de terra algures, teremos mais uma noite memorável passada num qualquer lugar
de La Mancha.
Rolámos muito, as horas de
luz escasseiam e nada mais há para além de vinhas, casas isoladas e a linha do
comboio. O “chamamento” surgiu de uma pequena construção de tijolo com um
apetecível alpendre. Para nós seria turismo rural, para o proprietário, podia
ser chato. O terreno num raio de 20 metros era plano, não muito longe, a casa
da bomba passou a ser a casa da serventia onde pregámos estacas. Relâmpagos
incendiavam o céu e a noite tornava-se ventosa. Acondicionámos os nossos
tesouros e preparámo-nos para o pior. Sei que o Pedro não pregou olho, estava
fascinado com a magnitude que os pequenos sons têm quando o silêncio reina na
planura. O vento amainou, não choveu.
02Set15
En un lugar de La Mancha- Tomeloso- Argamasila Alba-Lagunas Ruidera 75 kms
Já pedalamos há várias horas
e percebemos que aqui vive-se como outrora: de oliveiras, agricultura e vinhas
a perder de vista para lá de Tomelloso. Estamos a seguir o som da água que
corre livremente por um enorme canal de irrigação que nos conduz de frente ao
primeiro impacto com a forte presença da cor azul num tom diferente do
habitual. Sentimos o bafo da frescura e quase irrealidade da outrora La Mancha
plana e seca.
Já dentro do Parque Nacional
da Ruidera, o ruído da água das Cataratas do Hundimiento e o mergulho são o
nosso ponto alto da viagem.
03Set15
Lagunas Ruidera- La Solana-Manzanares-Almagro 100 kms
Têm sido muitos quilómetros
seguidos sempre com os mesmos tons e cenários a repetirem-se, estando nós numa
das paisagens naturais mais surpreendentes de Espanha (informação turística),
seria um sacrilégio não aproveitarmos para visitar este parque natural formado
por um conjunto de 15 lagoas e onde na sua parte mais alta tem lugar o
nascimento do rio Guadiana.
A pedalada começa, como
sempre, pouco depois do nascer do sol. Para contornar algumas cascatas e outras
formações geológicas ao longo das lagoas, torna-se necessário transpor (com
cuidado), pequenas pontes de madeira quase sempre envoltas em muita vegetação
aquática. Circundamos parte do PN e logo depois seguimos como planeado na direção
do parque de campismo de Almargo.
Voltaram os grandes espaços
a céu aberto sem as vinhas de cepa curta no horizonte. Estamos finalmente
naquela que é uma das localidades mais visitadas de Castilla La Mancha. A
desmesura de quilometragem de um percurso longo e esgotante no dia de ontem comprometeu
a visita à cidade.
04Set15
Almagro (camping)-La Solana-Malagon-Tablas de Daimiel - Daimiel
Estamos no último dia quixotesco a pedalar e queremos
restaurar o tempo perdido. Temos uma segunda oportunidade para observar de
perto a tão peculiar Plaza Mayor situada no coração de Almagro.
Poucas horas depois, paramos às portas de Ciudad Real.
Desta vez não bebemos café solúvel fervido no nosso fogão a gás em um lugar de
La Mancha. Misturámo-nos com os outros transeuntes que faziam um intervalo do
escritório. Voltámos à rotina…
O track contornava a cidade, como trazia na mente a
espectativa de ver mais uma bela cidade espanhola, resolvemos virar o guiador
da nossa bicicleta para o seu centro. Tive uma pequena desilusão, esperava
mais. Pedalámos, pedalámos para sairmos pela porta de Toledo.
Sobre a estrada que nos leva a La Solana, à vista, os
montes de Toledo. Neste tipo de viagem, respeitamos mais a hora a vontade de
comer que propriamente a hora do dia. Não sei que horas são mas sei que estamos
em Malagon, e pela primeira vez nestes dias, descobrimos um jardim com bancos,
água e sombra para podermos almoçar.
“Parecem bandos de pardais à
solta, os putos, os putos.” Um atrás de outro, como um carreiro de
formigas,começam a chegar. Espantam-se com as bicicletas carregadas, impressionam-se
com a rigidez dos nossos músculos e tocam-nos nos gémeos como que a provar que
são verdadeiros e feitos da mesma carne que a deles.
Pego no saco das madalenas.
Os espanhóis devem ter um fetiche por este doce (julgava que eram os
franceses), porque cada saco traz quase sempre um número infinito de madalenas.
Há 2 dias que são o meu mimo com o chá e café e ainda há suficientes para
aquela mole de liliputianos.
Partilhámos devagar mas
partimos depressa.
Vislumbramos agora o Parque
Natural de Tablas de Daimiel e percorremos o troço coincidente com o Caminho
Natural do Guadiana. O silêncio instala-se no panorama e entranha-se no nosso
espírito.Daqui a poucos quilómetros regressamos ao ponto de partida para
começarmos a pensar como será a próxima
a(ventura).
Epílogo
Esta rota não é difícil, não
é feia, não tem muitos quilómetros nem tampouco é longe.
Nunca uma visão tão
pessimista e com tanta negação me convenceu tão rapidamente a partir e a deixar
mulher e filho em Portugal.
Optar pela viagem sozinho
não é fácil, no entanto, depois de permanecer uma semana num eco resort situado
na costa alentejana, percebi que havia mais conforto e descanso do que podia
gastar.
O que me faltou foi
novidade, o desafio, algo que me abane, me tire do transe e me abra os olhos.
Aspiro a algo mais do que segurança e conforto. Quero alcançar pedaços de
território que, uma vez pisados, nunca mais me deixarão ser a mesma pessoa.
Quem nos ama, permite essa
busca…
“Bem te podes aclamar ditosa
sobre quantas hoje existem na terra, ó das belas, belíssima Dulcineia del
Toboso…
…por quem tenho feito, faço
e hei-de fazer as mais famosas façanhas de cavalaria que jamais se viram e vêem, ou hão-de ver neste mundo.
D.Quixote
D.Quixote
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