Manuel João Ramos in Traços
de Viagem
Escondidas bem no coração de Portugal, as praias fluviais não são um segredo para os amantes da natureza. A frescura das suas águas e a tranquilidade que oferecem longe de grandes amontoados de pessoas, influenciaram a minha decisão de delinear um trajeto exequível para a bicicleta, onde em qualquer altura do dia pudesse dar um mergulho refrescante.
No total, não percorri
300kms. O número de dias necessários para esta odisseia pode variar de acordo
com a duração que se quer estar em cada uma das 14 praias fluviais. Este
roteiro é uma excelente opção em tempo de pandemia.
D1 Tomar-Agroal-Penedo
Furado - 21julho
75kms – 1278 mts
Acordei de madrugada, o sol ainda não tinha nascido.
Precisava chegar à linha de Cascais para apanhar o primeiro comboio em direção
ao Cais do Sodré.
Os primeiros raios de luz despontam quando cruzo a
“primeira praia fluvial da Ribeira das Naus”. Estou tão estupefacto a escrever
como quando vi uma referência a este pedaço de água no site com uma lista de
mais de 250 praias fluviais. É um facto que a lista não está atualizada, mas, alguns
dos locais que constam, devem merecer um olhar critico.
Faltam 15 minutos para as 07h00. O regional em direção
a Tomar prepara-se para partir. Já em deslocamento, sinto-me em viagem. Sinto a
rutura com a normalidade pois sei que estou a avançar no tempo. É este o tempo
que vou guardar na memória, que vai alimentar os meus dias ajudando-me a
suportar as rotinas.
Para chegar ao Agroal a pedalar tenho 3 opções. O
percurso que me leva rio acima pela margem direita do Nabão segundo um é bom
para ser feito a pé, mas tem algumas dúvidas se é ciclável. Dias antes
questiono um amigo de Tomar que me faculta o telefone de um outro amigo que
conhece a região. Faltam mais de 10 minutos para chegar ao final da linha e
quando ligo ao Fernando, após um breve instante de conversa, decide vir comigo
e ser o meu guia. Arquiteto de formação, este ciclista abriu muitos dos trilhos
junto das margens e é da sua autoria as pontes de madeira para ligar alguns dos
pontos mais complicados.
A beleza do trajeto é indiscutível. As antigas
fábricas de papel do Prado e de Porto Cavaleiros começam a ficar para trás. O
açude da Real Fábrica de Fiação e o açude do Sobreirinho são alguns dos lugares
imperdíveis desta odisseia.
Despeço-me do Fernando em Vale Colmeias quando começo
a descer por um caminho pejado de pedra até ao Agroal. Não equipei a bicicleta
com pneus para todo o terreno nem tampouco optei por pneus de gravel. Mantive
os meus citadinos que em subidas de pedra solta perdem alguma tração.
A praia fluvial está confinada dentro de cercas. O
espaço comporta um máximo de 200 pessoas, e o fluxo é direcionado por setas
pintadas no solo. É hora de almoço, tenho direito a uma pulseira rosa que me
concede acesso às águas frias da nascente do Agroal. Infelizmente a bicicleta
não pode passar e é esta impossibilidade que me obriga a redefinir o resto da
etapa. Necessito passar para a outra margem e o único local disponível está
fechado.
Faz calor, muito calor. A água do bidon escalda-me a
garganta. Assim que avisto um café, não resisto a uma cerveja bem gelada. Posso
ficar ligeiramente zonzo, mas sei que ficarei hidratado.
Cruzo a ponte de Ferreira do Zêzere e entro em Vila de
Rei. Os desníveis mantêm-se. Na zona de lazer da cidade aproveito para
descansar enquanto mato o apetite dando sumiço a 4 carcaças e 2 queijos
alentejanos. Do centro de Portugal sai-se velozmente ladeira abaixo em curvas e
contracurvas até outro extraordinário spot chamado Penedo Furado.
São quase 21h00. O bar de apoio à praia fechou. Nesta
altura do dia já não se ouvem vozes por aqui. O correr das águas e o canto dos
pássaros conquistam este espaço. Existem churrasqueiras com bancadas e mesas de
apoio bem como casas de banho. Apesar se estar entrincheirado no fundo do vale
e de ser um lugar amplo, já sei onde colocar o hammock (cama de rede) para
poder passar a noite.
Antes do som da trovoada
senti constantemente o desconforto causado pelas melgas. Dentro do hammock
tenho muitas partes do corpo expostas que se tornam terreno fértil para
alimentar estes bichos noturnos. Tenho a sensação que dormi por intervalos, sei
que contei com 3 cargas de água e o som profundo da trovoada a ecoar pelo
desfiladeiro.
Acordei com os trabalhadores da Junta. Estão a montar os postes de iluminação para cobrirem toda a área da praia fluvial. Usufrui de parte da luz elétrica para preparar o jantar, enquanto permaneço sentado numa das mesas que dão apoio à churrasqueira atrás de mim.
Para sair de qualquer praia
fluvial é sempre preciso subir. Por um caminho praticamente paralelo ao do dia
anterior, sigo viagem em direção à praia de Bostelim.
Entro em aldeias pelas suas ruas estreitas e desertas, na minha frente, o aspeto das ruínas mostra o sinal de isolamento que se vive por estes lados. É comum não ver ninguém na rua e raramente encontrar um café. Vou em autonomia, tenho comida e alguns extras como capuchino, mas por vezes sabe bem optar por algo diferente e também comungar com quem ali vive. Desvio do trilho para a aldeia da Boa Farinha na esperança de encontrar algo. Não tenho sorte.
Em meu redor, uma mancha
negra. Os jovens pinheiros não resistiram a um incêndio recente. É com esta
envolvente que chego a Bostelim. A infraestrutura continua em obras e por isso
demoro pouco até voltar a sentar-me no selim e pedalar estrada acima. Em S.João
do Peso tenho um encontro com a carrinha do padeiro. Compro pão com chouriço,
peço uma cerveja média no café junto da igreja e aproveito para carregar o
telemóvel (ainda não decidi usar a parafernália que alimentam estes aparelhos
eletrónicos).
Aproveito a frescura do
ambiente para sair perto das 13h. Venho sempre de uma cota mais elevada antes
de chegar a qualquer praia fluvial. Avisto a ponte romana dos 3 concelhos, sob
ela, o curso de água leva-me até Pego das Cancelas. Sossegado, tranquilo, com
água quente, aqui existe muita sombra, churrasqueiras e bar decorado com bom
gosto, onde não falam opções muito saudáveis como aquela que bebi. Um pagaio
(café com leite de aveia e gelo), algo com uma textura semelhante ao Irish
Coffee.
As manchas de pinheiros
fazem-me companhia sempre até à Sertã. O piso ajuda a rolar. Um outro ciclista
do grupo Portugal Bikepacking está atento à minha jornada e oferece-me uma
cerveja na sai cidade. Visito a praia fluvial da Ribeira Grande e meto conversa
com um jovem que se desloca para as piscinas que são adjacentes à praia. O
Miguel, o rapaz da bicicleta, faz questão de levar-me ao ponto de encontro com
o Luís Cabaço junto ao Minipreço bem em frente da sua loja de ferragens.
D3 Praia Fluvial Troviscal - Praia Fluvial Carvoeiro 23julho
90kms – 1800 mts
Tive que adaptar bem a
montagem do hammock dentro de uma pequena casa de chapa metálica. No pano, as
instruções são claras. Recomendam 3 metros de montagem, mas nem colocando o
pano na diagonal da estrutura eu conseguia tal distância. A curvatura do tecido
quase tocava no solo. Por existir um vazio de 30 cm acima do solo sem chapa,
senti o vento da noite e foi necessário vestir mais uma camada de roupa.
Deitado de barriga para o ar, sem nada na minha frente, posso ver o céu
estrelado enquanto a minha “cama balança” de um lado para o outro.
O tempo passou devagar e o
sol ainda não atravessou o cume da montana enquanto tomo a aveia e tomo um
capuchino.
Momento a momento, pedalada
a pedalada, vou sendo surpreendido pelo caminho a meia encosta que sai do
Troviscal. Acompanho o curso do rio e é no porto do Troviscal que o cruzo para,
logo de seguida, trilhar uma longa extensão de paralelos de basalto até à
aldeia do Mosteiro. É nesta povoação que o caminho se junta à N238 e
rapidamente chego a Oleiros para mergulhar na praia fluvial de Açude Pinto. De
salientar que é considerada “praia de ouro” da QUERCUS. Com parque de campismo,
várias infraestruras de apoio, um pano de água gigante e não está ninguém. Sou
apenas eu a fazer ondas na piscina.
Desta cidade foi sempre a subir
até ao parque eólico Cabeço da Rainha. É sobre este cume que começo a mudar o
sentido da marcha e a dirigir-me para oeste. A gravilha solta torna a
trajetória da bicicleta muito incerta. Do topo da montanha, junto ao marco
geodésico com a cota acima dos 1000 metros, foi uma descida monumental até à
praia fluvial do Malhadal. O azul dos insufláveis que delimitam a piscina,
vê-se bem longe. Todo o espaço em redor é cuidado com as hortências debaixo das
pérgulas a adornar os caminhos que nos levam cada vez para mais perto daquilo
que vim à procura. Pouca gente.
O isolamento mantém-se. Nas
aldeias que surgem não encontro um café onde possa comer algo. Chego à praia da
Aldeia Ruiva e deparo-me com um ambiente de máquinas, trabalhadores e muita
poeira. Tudo está em obras. Sem outra opção, retorno alguns quilómetros mais
acima e continuo para Cardigos. O calor sufoca, o ar que sinto bater no corpo e
rosto, vem quente. Sigo um estradão, sempre à sombra de árvores, até à entrada
da praia fluvial. O barulho é notório. Há muita gente, a piscina em azul
turquesa contrasta com tudo o que a rodeia. Não importa de onde se olhe.
Faço nesta piscina o mesmo
que em todas as outras. Sigo o ritual do mergulho. Tomo a temperatura da água e
refresco o corpo enquanto preparo a mente para uma nova andança. Passa das
16h00, uma tosta e uma imperial torna-se o almoço de hoje.
A praia do Carvoeiro está a
23kms. A bicicleta continua a ser o meio de transporte até ao novo ponto de
água. Foi a etapa mais longa e cansativa. Quando ainda me faltava uma dezena de
quilómetros, já não sigo a orientação do gps. Fiquei sem pilhas, por desleixo,
não tive vontade de desfazer o saco, apanhar outras pilhas, e dar nova vida ao
aparelho. Era praticamente sempre asfalto e seria fácil seguir as placas.
Quando páro no fim da aldeia do Carvoeiro e pergunto a um habitante se era
necessário descer mais, ele aponta na direção oposta e diz-me que falhei uma
placa no topo da aldeia. À minha esquerda existe um café, nada como beber umas
cervejas, relaxar, revitalizar o gps e adiar o inevitável.
Largos minutos depois,
faço-me à subida. Já saiu muita gente, os poucos que se mantém no relvado da
praia fluvial aproveitam o final da tarde quente e deixam-se estar. São quase
21hoo, não tenho pressa, bebi bem e exagerei no que comi aquando da minha
paragem no supermercado de Cardigos.
Tenho quase a certeza que
serei o único a olhar o céu deitado sobre um saco de rede que será estendido,
quem sabe, entre 2 chapéus de palha que estão na areia ou debaixo do enorme
telheiro que protege as mesas de refeição.
D4 Praia Fluvial Carvoeiro- Praia Fluvial Alamal- 24julho
44kms -
Não sei se ver o raiar do
sol cura uma ressaca, no entanto, sei que ajuda muito a recuperar de uma noite
horrível e mal dormida. Alguns quilómetros mais abaixo no fim da aldeia, volto
a entrar no café do dia anterior. Não foi para beber cerveja, tive que reforçar
a dose de cafeína. Sem rede móvel, mas com o wi-fi do estabelecimento, publico
no FB que voltei ao caminho e alerto todos os que amo, pois, mesmo estando
habituados a que esteja em locais sem cobertura, aviso sempre que posso. As
estradas municipais ajudam imenso a encurtar distâncias. Já num estradão,
recheado de adjetivos, chego à cascata do Pego da Rainha. Não sou o único, um
cão aproxima-se de mim junto do rio. Avanço prudentemente e vejo um casal na
sua caravana. Entabulamos conversa, ficam fãs do périplo que fiz até então,
fotografam a minha check-list de praias e decidem abortar o plano inicial de
descerem até Vila Velha de Rodão.
Mergulho vestido com roupa
de licra. São 10h00 da manhã, mas o calor não esperou para chegar. Parece que
as pilhas de reserva já não vinham com a carga completa. O gps queixa-se. Vou
sobre terra batida, ao longe, numa determinada direção, está Belver. O aparelho,
em modo de poupança de energia, desliga o écran passados alguns segundos. Passo
sob a A23 mas ao confirmar se estou no sitio certo, vejo que estou desfasado
centenas de metros. Nova passagem sob o tabuleiro da via rápida, desta vez o
caminho não coincidia com o track. Sem confiança, avanço largos quilómetros até
entroncar no alcatrão que me leva a ver o castelo de Belver. Cruzo o Tejo e ao
longo do passadiço do Alamal chego à areia branca da praia onde volto a
mergulhar.
Epílogo:
Será que chegar a um lugar
de sonho está apenas ao alcance de alguns, ou será assim tão árduo? Na minha
opinião, está perto. Não precisamos de nenhum passaporte, de contratar um guia ou
agência de viagens. E o mais maravilhoso é que praticamente não tem custo e é
em Portugal. Não existe um palmo de terra neste país que não mereça ser
descoberto a pedalar.
Os interesses são pessoais e
os gostos não se discutem. Eu adoro estar num sitio bonito bem colado a algo
que me centra com a natureza tal como o contato com a água pura e os cheiros da
terra. É como se algo divino me tocasse.
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