19 janeiro 2021

Pequena Rota pelas Praias Fluviais da zona Centro

 





Cada um de nós é os sonhos a que se amarra”

Manuel João Ramos in Traços de Viagem

 Viagem em 2 rodas pelas praias fluviais outrora desconhecidas de turistas. Tudo é válido. Qualquer razão serve para carregar a bicicleta e pedalar.

 No livro Traços de Viagem que transportei comigo nestes dias, surge algures, “Que sentido fará deixar para outros algum traço das nossas viagens? Talvez apenas aquele sentido que se expressa nas palavras de Salomão: o mundo gasta-se, erode-se, destrói-se e altera-se, mas, nos traços que nele deixamos, ficam preservados – como num molde invisível – os múltiplos sulcos que foram feitos antes dos nossos”.

Escondidas bem no coração de Portugal, as praias fluviais não são um segredo para os amantes da natureza. A frescura das suas águas e a tranquilidade que oferecem longe de grandes amontoados de pessoas, influenciaram a minha decisão de delinear um trajeto exequível para a bicicleta, onde em qualquer altura do dia pudesse dar um mergulho refrescante.

No total, não percorri 300kms. O número de dias necessários para esta odisseia pode variar de acordo com a duração que se quer estar em cada uma das 14 praias fluviais. Este roteiro é uma excelente opção em tempo de pandemia.

D1 Tomar-Agroal-Penedo Furado - 21julho



75kms – 1278 mts

Acordei de madrugada, o sol ainda não tinha nascido. Precisava chegar à linha de Cascais para apanhar o primeiro comboio em direção ao Cais do Sodré.

Os primeiros raios de luz despontam quando cruzo a “primeira praia fluvial da Ribeira das Naus”. Estou tão estupefacto a escrever como quando vi uma referência a este pedaço de água no site com uma lista de mais de 250 praias fluviais. É um facto que a lista não está atualizada, mas, alguns dos locais que constam, devem merecer um olhar critico.



Faltam 15 minutos para as 07h00. O regional em direção a Tomar prepara-se para partir. Já em deslocamento, sinto-me em viagem. Sinto a rutura com a normalidade pois sei que estou a avançar no tempo. É este o tempo que vou guardar na memória, que vai alimentar os meus dias ajudando-me a suportar as rotinas.

Para chegar ao Agroal a pedalar tenho 3 opções. O percurso que me leva rio acima pela margem direita do Nabão segundo um é bom para ser feito a pé, mas tem algumas dúvidas se é ciclável. Dias antes questiono um amigo de Tomar que me faculta o telefone de um outro amigo que conhece a região. Faltam mais de 10 minutos para chegar ao final da linha e quando ligo ao Fernando, após um breve instante de conversa, decide vir comigo e ser o meu guia. Arquiteto de formação, este ciclista abriu muitos dos trilhos junto das margens e é da sua autoria as pontes de madeira para ligar alguns dos pontos mais complicados.

A beleza do trajeto é indiscutível. As antigas fábricas de papel do Prado e de Porto Cavaleiros começam a ficar para trás. O açude da Real Fábrica de Fiação e o açude do Sobreirinho são alguns dos lugares imperdíveis desta odisseia.




Despeço-me do Fernando em Vale Colmeias quando começo a descer por um caminho pejado de pedra até ao Agroal. Não equipei a bicicleta com pneus para todo o terreno nem tampouco optei por pneus de gravel. Mantive os meus citadinos que em subidas de pedra solta perdem alguma tração.



A praia fluvial está confinada dentro de cercas. O espaço comporta um máximo de 200 pessoas, e o fluxo é direcionado por setas pintadas no solo. É hora de almoço, tenho direito a uma pulseira rosa que me concede acesso às águas frias da nascente do Agroal. Infelizmente a bicicleta não pode passar e é esta impossibilidade que me obriga a redefinir o resto da etapa. Necessito passar para a outra margem e o único local disponível está fechado.


O gps estima que preciso voltar para trás e retomar a direção por Tomar antes de chegar ao Penedo Furado. Olho bem para o pequeno écran e procuro alguma povoação que esteja do outro lado da colina onde me encontro. Navego por azimute para Calvinos. Os caminhos de terra alternam com pequenos troços de alcatrão. São estradas municipais que fazem a ligação entre aldeias e são elas que me permitem avançar até retomar o track original depois do Agroal.

Faz calor, muito calor. A água do bidon escalda-me a garganta. Assim que avisto um café, não resisto a uma cerveja bem gelada. Posso ficar ligeiramente zonzo, mas sei que ficarei hidratado.

Cruzo a ponte de Ferreira do Zêzere e entro em Vila de Rei. Os desníveis mantêm-se. Na zona de lazer da cidade aproveito para descansar enquanto mato o apetite dando sumiço a 4 carcaças e 2 queijos alentejanos. Do centro de Portugal sai-se velozmente ladeira abaixo em curvas e contracurvas até outro extraordinário spot chamado Penedo Furado.





São quase 21h00. O bar de apoio à praia fechou. Nesta altura do dia já não se ouvem vozes por aqui. O correr das águas e o canto dos pássaros conquistam este espaço. Existem churrasqueiras com bancadas e mesas de apoio bem como casas de banho. Apesar se estar entrincheirado no fundo do vale e de ser um lugar amplo, já sei onde colocar o hammock (cama de rede) para poder passar a noite.

 D2 Praia Fluvial Penedo Furado- Praia Fluvial Troviscal - 22julho

61kms – 1198 mts

Antes do som da trovoada senti constantemente o desconforto causado pelas melgas. Dentro do hammock tenho muitas partes do corpo expostas que se tornam terreno fértil para alimentar estes bichos noturnos. Tenho a sensação que dormi por intervalos, sei que contei com 3 cargas de água e o som profundo da trovoada a ecoar pelo desfiladeiro.

Acordei com os trabalhadores da Junta. Estão a montar os postes de iluminação para cobrirem toda a área da praia fluvial. Usufrui de parte da luz elétrica para preparar o jantar, enquanto permaneço sentado numa das mesas que dão apoio à churrasqueira atrás de mim.

Para sair de qualquer praia fluvial é sempre preciso subir. Por um caminho praticamente paralelo ao do dia anterior, sigo viagem em direção à praia de Bostelim.


Entro em aldeias pelas suas ruas estreitas e desertas, na minha frente, o aspeto das ruínas mostra o sinal de isolamento que se vive por estes lados. É comum não ver ninguém na rua e raramente encontrar um café. Vou em autonomia, tenho comida e alguns extras como capuchino, mas por vezes sabe bem optar por algo diferente e também comungar com quem ali vive. Desvio do trilho para a aldeia da Boa Farinha na esperança de encontrar algo. Não tenho sorte.

Em meu redor, uma mancha negra. Os jovens pinheiros não resistiram a um incêndio recente. É com esta envolvente que chego a Bostelim. A infraestrutura continua em obras e por isso demoro pouco até voltar a sentar-me no selim e pedalar estrada acima. Em S.João do Peso tenho um encontro com a carrinha do padeiro. Compro pão com chouriço, peço uma cerveja média no café junto da igreja e aproveito para carregar o telemóvel (ainda não decidi usar a parafernália que alimentam estes aparelhos eletrónicos).

Aproveito a frescura do ambiente para sair perto das 13h. Venho sempre de uma cota mais elevada antes de chegar a qualquer praia fluvial. Avisto a ponte romana dos 3 concelhos, sob ela, o curso de água leva-me até Pego das Cancelas. Sossegado, tranquilo, com água quente, aqui existe muita sombra, churrasqueiras e bar decorado com bom gosto, onde não falam opções muito saudáveis como aquela que bebi. Um pagaio (café com leite de aveia e gelo), algo com uma textura semelhante ao Irish Coffee.



As manchas de pinheiros fazem-me companhia sempre até à Sertã. O piso ajuda a rolar. Um outro ciclista do grupo Portugal Bikepacking está atento à minha jornada e oferece-me uma cerveja na sai cidade. Visito a praia fluvial da Ribeira Grande e meto conversa com um jovem que se desloca para as piscinas que são adjacentes à praia. O Miguel, o rapaz da bicicleta, faz questão de levar-me ao ponto de encontro com o Luís Cabaço junto ao Minipreço bem em frente da sua loja de ferragens.



É intuitivo manter uma conversa amigável quando temos gostos em comum. A tarde já vai longa quando apanho a antiga N238 em direção a Oleiros. Algures, bem escondida, permanece a praia do Troviscal. O bar de apoio está fechado, não há ninguém por aqui. Volto novamente a ter o privilégio de trazer comigo toda a tranquilidade e beleza de um espaço que poucos devem conhecer.



D3 Praia Fluvial Troviscal - Praia Fluvial Carvoeiro 23julho



90kms – 1800 mts

Tive que adaptar bem a montagem do hammock dentro de uma pequena casa de chapa metálica. No pano, as instruções são claras. Recomendam 3 metros de montagem, mas nem colocando o pano na diagonal da estrutura eu conseguia tal distância. A curvatura do tecido quase tocava no solo. Por existir um vazio de 30 cm acima do solo sem chapa, senti o vento da noite e foi necessário vestir mais uma camada de roupa. Deitado de barriga para o ar, sem nada na minha frente, posso ver o céu estrelado enquanto a minha “cama balança” de um lado para o outro.





O tempo passou devagar e o sol ainda não atravessou o cume da montana enquanto tomo a aveia e tomo um capuchino.

Momento a momento, pedalada a pedalada, vou sendo surpreendido pelo caminho a meia encosta que sai do Troviscal. Acompanho o curso do rio e é no porto do Troviscal que o cruzo para, logo de seguida, trilhar uma longa extensão de paralelos de basalto até à aldeia do Mosteiro. É nesta povoação que o caminho se junta à N238 e rapidamente chego a Oleiros para mergulhar na praia fluvial de Açude Pinto. De salientar que é considerada “praia de ouro” da QUERCUS. Com parque de campismo, várias infraestruras de apoio, um pano de água gigante e não está ninguém. Sou apenas eu a fazer ondas na piscina.

Desta cidade foi sempre a subir até ao parque eólico Cabeço da Rainha. É sobre este cume que começo a mudar o sentido da marcha e a dirigir-me para oeste. A gravilha solta torna a trajetória da bicicleta muito incerta. Do topo da montanha, junto ao marco geodésico com a cota acima dos 1000 metros, foi uma descida monumental até à praia fluvial do Malhadal. O azul dos insufláveis que delimitam a piscina, vê-se bem longe. Todo o espaço em redor é cuidado com as hortências debaixo das pérgulas a adornar os caminhos que nos levam cada vez para mais perto daquilo que vim à procura. Pouca gente.





O isolamento mantém-se. Nas aldeias que surgem não encontro um café onde possa comer algo. Chego à praia da Aldeia Ruiva e deparo-me com um ambiente de máquinas, trabalhadores e muita poeira. Tudo está em obras. Sem outra opção, retorno alguns quilómetros mais acima e continuo para Cardigos. O calor sufoca, o ar que sinto bater no corpo e rosto, vem quente. Sigo um estradão, sempre à sombra de árvores, até à entrada da praia fluvial. O barulho é notório. Há muita gente, a piscina em azul turquesa contrasta com tudo o que a rodeia. Não importa de onde se olhe.

Faço nesta piscina o mesmo que em todas as outras. Sigo o ritual do mergulho. Tomo a temperatura da água e refresco o corpo enquanto preparo a mente para uma nova andança. Passa das 16h00, uma tosta e uma imperial torna-se o almoço de hoje.




A praia do Carvoeiro está a 23kms. A bicicleta continua a ser o meio de transporte até ao novo ponto de água. Foi a etapa mais longa e cansativa. Quando ainda me faltava uma dezena de quilómetros, já não sigo a orientação do gps. Fiquei sem pilhas, por desleixo, não tive vontade de desfazer o saco, apanhar outras pilhas, e dar nova vida ao aparelho. Era praticamente sempre asfalto e seria fácil seguir as placas. Quando páro no fim da aldeia do Carvoeiro e pergunto a um habitante se era necessário descer mais, ele aponta na direção oposta e diz-me que falhei uma placa no topo da aldeia. À minha esquerda existe um café, nada como beber umas cervejas, relaxar, revitalizar o gps e adiar o inevitável.

Largos minutos depois, faço-me à subida. Já saiu muita gente, os poucos que se mantém no relvado da praia fluvial aproveitam o final da tarde quente e deixam-se estar. São quase 21hoo, não tenho pressa, bebi bem e exagerei no que comi aquando da minha paragem no supermercado de Cardigos.

Tenho quase a certeza que serei o único a olhar o céu deitado sobre um saco de rede que será estendido, quem sabe, entre 2 chapéus de palha que estão na areia ou debaixo do enorme telheiro que protege as mesas de refeição.





D4 Praia Fluvial Carvoeiro- Praia Fluvial Alamal- 24julho



44kms -

Não sei se ver o raiar do sol cura uma ressaca, no entanto, sei que ajuda muito a recuperar de uma noite horrível e mal dormida. Alguns quilómetros mais abaixo no fim da aldeia, volto a entrar no café do dia anterior. Não foi para beber cerveja, tive que reforçar a dose de cafeína. Sem rede móvel, mas com o wi-fi do estabelecimento, publico no FB que voltei ao caminho e alerto todos os que amo, pois, mesmo estando habituados a que esteja em locais sem cobertura, aviso sempre que posso. As estradas municipais ajudam imenso a encurtar distâncias. Já num estradão, recheado de adjetivos, chego à cascata do Pego da Rainha. Não sou o único, um cão aproxima-se de mim junto do rio. Avanço prudentemente e vejo um casal na sua caravana. Entabulamos conversa, ficam fãs do périplo que fiz até então, fotografam a minha check-list de praias e decidem abortar o plano inicial de descerem até Vila Velha de Rodão.




Mergulho vestido com roupa de licra. São 10h00 da manhã, mas o calor não esperou para chegar. Parece que as pilhas de reserva já não vinham com a carga completa. O gps queixa-se. Vou sobre terra batida, ao longe, numa determinada direção, está Belver. O aparelho, em modo de poupança de energia, desliga o écran passados alguns segundos. Passo sob a A23 mas ao confirmar se estou no sitio certo, vejo que estou desfasado centenas de metros. Nova passagem sob o tabuleiro da via rápida, desta vez o caminho não coincidia com o track. Sem confiança, avanço largos quilómetros até entroncar no alcatrão que me leva a ver o castelo de Belver. Cruzo o Tejo e ao longo do passadiço do Alamal chego à areia branca da praia onde volto a mergulhar.




Epílogo:

Será que chegar a um lugar de sonho está apenas ao alcance de alguns, ou será assim tão árduo? Na minha opinião, está perto. Não precisamos de nenhum passaporte, de contratar um guia ou agência de viagens. E o mais maravilhoso é que praticamente não tem custo e é em Portugal. Não existe um palmo de terra neste país que não mereça ser descoberto a pedalar.

Os interesses são pessoais e os gostos não se discutem. Eu adoro estar num sitio bonito bem colado a algo que me centra com a natureza tal como o contato com a água pura e os cheiros da terra. É como se algo divino me tocasse.

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